3 de dezembro de 2011

Física Quântica e os espiritualistas no século 21 (análise preliminar)

Representação gráfica da molécula de DNA.
Do ponto de vista filosófico, espiritualista é todo aquele que acredita haver algo além da matéria, que justifique os fenômenos da consciência, do ser e da personalidade humana (e, porque não dizer, dos animais). Deixa de ser espiritualista aquele que acredite que a matéria seja a base para se compreender os fenômenos psíquicos e psicológicos. Essa é uma maneira muito didática de apresentar conceitos que sempre geram muita confusão e é de autoria de Allan Kardec (*).

Mas, no que consiste esse materialismo? Já que a física moderna demonstrou que existem modalidades de matéria muito distantes dos nossos sentidos, deixa de ser viável acreditar que fenômenos como o da consciência sejam explicáveis por meio de interação simples entre átomos entendidos como blocos rígidos de matéria. Além desses 'blocos constitutivos', existem outras entidades na forma de campos ou forças que atuam à distância, além de outros conceitos fundamentais que são necessários para explicar como a matéria pode se organizar para constituir algo vivo primeiro e, então, como esse ser vivo pode manifestar consciência. O materialismo moderno, portanto, deve fazer uso dessas ideias e conceitos abstratos para explicar como a vida e a consciência podem existir em nosso mundo. Mas então, a raiz da palavra 'materialismo' na forma de 'matéria' ou aquela coisa sólida e tangível deixa de ter seu significado original.

Visto meramente do ponto de vista das definições que se faz para coisas e conceitos, pode-se defender a ideia hoje em dia que há menos distância entre as noções espiritualistas do ser do que antes, durante o século 19, por exemplo. No auge do positivismo lógico, a matéria que impressionava os sentidos era tudo o que poderia existir. Hoje, há meios de se compreender que o espírito (Nota 1) seria também uma força, outro elemento, inacessível aos sentidos ordinários como  ingrediente fundamental para a formação da consciência. Entretanto, há uma clara dificuldade quando se trata de validar essa noção do ponto de vista considerado 'científico'.

A visão de Mundo pelos cientistas modernos (início do século 21)

Em paralelo com tal constatação, existe uma queixa por parte do mundo acadêmico com relação a qualquer tentativa de explicação do mundo a nossa volta por meio de conceitos que não nascem diretamente do  processo considerado adequado de se fazer ciência. É que o pensamento científico de nossa época se desenvolveu a partir da ideia de que noções como a existência de deuses ou forças invisíveis conscientes que atuariam diretamente no mundo são desnecessárias. No passado, a religião organizada ditava as normas sobre o que seria considerado razoável e não havia problema em se acreditar que o mundo era de fato regido diretamente pelas mãos de Deus. Desde que a física clássica conseguiu explicar muitos dos fenômenos mecânicos e elétricos do Universo com base na existência de leis cegas e sempre operantes (não são leis arbitrárias como arbitrário pareciam ser os caprichos de Deus), todas as outras ciências (principalmente a Biologia e a Medicina) também buscaram desenvolver suas teorias dentro da noção de que leis cegas são suficientes para explicar os fenômenos naturais.

Essa visão do mundo, conjugada à maneira positiva de se encarar as entidades (coisas que existem no mundo, de fato) que trabalham como 'atores' nas teorias científicas, levou a uma situação onde aparentemente não mais seria possível acreditar na possibilidade de forças inteligentes (além daquelas que tem como causa a existência dos seres humanos) atuarem diretamente no Universo. Há uma imensa categoria de fenômenos naturais (que são objeto de estudo das ciências físicas) que são claramente produto de forças ou leis cegas. Entretanto,  a comunidade acadêmica acabou se especializando neles e são hoje  incapazes de aceitar que há uma limitação de escopo na ciências que trabalham. Por se referirem a fenômenos simples, colecionáveis, reprodutíveis etc, as teorias deles derivados são necessariamente limitadas a esses objetos que criam uma visão de mundo igualmente limitada. Acrescenta-se a isso o espírito corporativista das associações científicas e teremos um ambiente notoriamente cético em sua maneira de considerar determinados fenômenos e avesso a qualquer tentativa de mudança ou novidade, que é mal vista como um enxerto desnecessário e suspeito.

Surge a psicologia quântica

No que a física quântica mudou esse quadro? Uma resposta a essa questão pareceria envolver necessariamente grande conhecimento dessa nova física. Mas, no que nos interessa aqui, não deixa de ser interessante observar o fenômeno recente de como essa nova física tem sido invocada para justificar a crença de determinados grupos espiritualistas, psicólogos e até de grupos de acadêmicos marginalizados (Zohar, 1999). O exemplo que encabeça a lista é a do físico e escritor Amit Goswami que, numa série de livros, palestras e congressos, se fez conhecido como um 'ativista quântico' e propõe uma 'interpretação' radicalmente quântica do ser humano.  Além disso, vários parapsicólogos (Kugel, 2000) aderiram à ideia de que é preciso utilizar a física quântica para explicar os fenômenos psíquicos. Essa física também surge como uma novidade capaz de motivar uma nova psicologia (Zohar, 1990).

O fenômeno é curioso porque a física quântica, não obstante ter introduzido uma modificação bastante radical na maneira de se encarar as entidades que fazem parte das teorias da física anterior, apenas é aplicável ao mundo infinitamente pequeno. Trata-se da microfísica ou física das partículas e agregados atômicos, que só atua em escalas muito pequenas. Como então que essa nova física veio parar em compêndios de psicologia e artigos de parapsicologia?

Nossa introdução procurou fornecer um quadro muito resumido da atual maneira de se encarar o mundo por parte dos cientistas. Uma vez que a física quântica é um mistério - sua interpretação ainda é motivo de calorosos debates entre os especialistas - parece ser conveniente para tais grupos invocar a física quântica na psicologia, parapsicologia e até ecologia que também lidam com mistérios. Como a física quântica é um mistério e a consciência é um mistério, então o cérebro é quântico... Dessa forma, a física quântica surge como uma validação científica de mistérios para uma ciência que aprendeu a encarar os fenômenos naturais como se eles não o fossem. É compreensível a irritação de muitos acadêmicos com a 'onda quântica' na psicologia e outras disciplinas.

Desvantagens da abordagem quântica em assuntos espiritualistas

Alguns de nossos leitores poderiam nos questionar porque alguém que se afirma espiritualista poderia ser contra essa abordagem 'quântica'. Minha argumentação, em ordem de importância é conforme segue:
  1. Embora concorde que a física quântica alterou nossa visão do mundo (microscópico), não é possível querer extrapolar essa nova física para a psicologia porque os objetos de estudo dessa disciplina podem não ser quânticos (Jahn, 2011, ver Nota (2)). Abusa-se demais de analogias e interpretações para forçar uma nova maneira de ver o mundo derivada de coisas que não são os objetos da vida cotidiana. Isso tem consequências ainda maiores quando buscamos descrever os fenômenos oriundos da atuação do espírito sobre a matéria. Para mim o princípio inteligente (que é a fonte de toda informação dos seres) não é quântico, os que assim pensam ainda precisam demonstrar que é possível levar adiante essa ideia não apenas como uma simples extrapolação; 
  2. Ao se buscar descrever o comportamento da mente, do espírito ou da consciência com base em analogias da física quântica, será que poderemos também exportar diretamente os métodos de pesquisa da microfísica para esses objetos de estudo? A tarefa de criar uma nova ciência não está apenas em encontrar uma nova explicação para certos fatos, mas criar um método de pesquisa que seja consistente, dê resultados práticos e possibilite relacionamento harmônico entre diversas disciplinas correlacionadas. Em suma: é preciso demonstrar a fertilidade heurística das analogias quânticas nos estudos da consciência e psicologia;
  3. A psicologia e até doutrinas espiritualistas de forma geral não precisam de interpretações quânticas para descrever o principal objeto de seus estudos. É possível conceber aplicações e métodos de grande valor prático para essas disciplinas sem que seja necessário se recorrer à analogia com a física quântica. Podemos argumentar que recorrer a analogias da nova física pode prejudicar o desenvolvimento de novas ideias e novos métodos de investigação nesses campos de conhecimento;
O conhecimento completo dos fundamentos da física quântica, ao ponto que seria possível fazer propostas de aplicações inovadoras na pesquisa corrente da física é uma atividade que leva anos de estudo e exige conhecimento nada elementar de álgebra, geometria e cálculo. Será que as propostas de se interpretar o fenômeno da consciência desde o ponto de vista da física quântica chegarão ao ponto de incorporar também a necessidade de se conhecer e aplicar esses métodos de pesquisa? De outra forma, como a ciência do 'psi quântico' irá se desenvolver? Essas são questões que devem ser respondidas de forma satisfatória, antes que se propague uma ideia que pode estar condenada desde seu princípio.

Além das justificativa pouco convincentes do ativista quântico Goswami (Fonseca, 2010), sabemos que é um fenômeno mais de aceitação, da necessidade de se ter o endosso da ciência - que se crê popularmente ser a guardiã da verdade sobre o mundo - do que qualquer outra coisa. Ao aplicar conceitos da microfísica na psicologia humana, estamos diante de um quadro nunca visto antes de desespero intelectual, um quadro sem nenhum respaldo de evidência possível, permitido por uma brecha de interpretação surgida dentro da própria física.

E que brecha é essa?  As forças admitidas cegas que guiam os fenômenos naturais continuam cegas nos fenômenos quânticos. Mas, mesmo assim, por sugerir fortemente que podemos estar enganados com relação à maneira como vemos o mundo, a física quântica fornece um contexto de conhecimento que se coloca fortemente em desacordo com uma visão mecânica e puramente sensorial do mundo. Nossa visão do mundo macroscópica (não quântica) pode ser apenas um epifenômeno sensorial, não estamos vendo a realidade que é manifestamente oculta. É principalmente isso que os 'ativistas quânticos' querem chamar atenção.  Mas duvido que isso seja um caminho prático para se gerar conhecimento útil no que concerne à realidade do Espírito.

Referências
  • (*) Ver a Introdução de "O Livro dos Espíritos", Parte I.
  • Fonseca, A. F. (2010), Uma análise espírita da obra "A Física da alma" de Amit Goswani, O Espiritismo visto pelas áreas de conhecimento atuais, Textos selecionados Ed. por CCDPE-ECM, São Paulo.
  • Goswami, A. (1993) The self-awere universe. New York, Puttnam’s Sons;
  • Goswami, A. (1998). O universo autoconsciente. Rio de Janeiro, Rosa dos Tempos;
  • Jahn R. G., Dunne B. J. (2011), Journal of Scientific Exploration, Vol. 25, No. 2, pp. 339–341.
  • Kugel,W. (2000) Quantum correlation as a potencial detector for Psi-phenomena. Proceeding of 43rd Annual Convention of Parapsychological Association, Frieburg, Alemanha;
  • Zohar, D (1999), O Ser quântico, Editora Best Seller.
Notas


(1) espírito; de acordo com 'O Livro dos Espíritos' (Questão #23) o espírito é o princípio inteligente, necessário para 'espiritualizar' a matéria.  

(2) Os pesquisadores pioneiros em interpretações quânticas para a consciência Robert Jahn e Brenda Dunne alertaram recentemente (Jahn, 2011):
Muitas pessoas envolvidas em áreas de fronteira de estudo científico mostram uma tendência de invocar a nomenclatura da mecânica quântica para aumentar sua credibilidade acadêmica tanto com o público leigo como acadêmico. Embora essa estratégia seja efetiva no esclarecimento de conceitos sutis e podem ser caminhos úteis para se enfatizar a necessidade de perspectivas alternativas à realidade, se levado ao excesso pode se tornar contra produtivo e deve ser cuidadosamente evitado. Primeiro de tudo, existe uma tendência compreensível, se não totalmente legítima, das comunidades das 'ciências exatas' em evitarem a aplicação  do que entendem ser suas conceituações e classificações quânticas a outras áreas menos precisas e rigorosas do conhecimento, especialmente quando tais apropriações são escandalosamente vazias, se não totalmente incorretas.  Em nossa luta continua para o desenvolvimento de um referencial conceitual capaz de acomodar a dimensão subjetiva da realidade, tais tentativas ingênuas parecem ser mais ofensivas do que persuasivas. Mas, além disso, elas tentam obscurecer o fato importante de que a mecânica quântica, como qualquer estrutura teórica, é, em si mesma, uma técnica metafórica para se formalizar e comunicar representações objetivas de observações e interpretações de dados subjetivos. (...)


5 comentários:

  1. Olá Ademir,

    Apesar de suspeito em opinar, os seus comentários estão muito bem escritos e mostram a deficiência da utilização de conceitos da Física Quântica em explicações sobre a natureza do espírito.

    Em particular, o movimento espírita tem muito mais a perder do que a ganhar com essa "onda quântica" de explicações e percebe-se pela nota (2) do texto o equívoco da mesma. Se de um lado, cada pessoa é livre para crer e achar o que bem entende, eu acho apropriado chamar a atenção do movimento espírita para evitar a comercialização de livros, artigos, DVDs, cursos e apresentações com conteúdo envolvendo essa "onda quântica", sob risco de divulgar uma imagem de ignorância e imprudência em matéria de assuntos científicos.

    Um abraço,
    Alexandre F. Fonseca

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  2. Ola Alexandre

    Já conversamos bastante sobre isso. Acho que para evitar essa onda, é preciso esclarecer as pessoas sobre o significado real da física quântica e sobre o que seria a 'conexão' entre essa nova física e o espiritualismo. Meu pressuposto é que a nova física serve para tentar inserir o espiritualismo em certos ambientes mais acadêmicos e é aproveitado por outros para propagandear ideias espiritualistas usando um viés desnecessariamente 'cientifico'. O movimento espírita brasileiro infelizmente é mais presa do último caso. Mas acredito que com esclarecimento podemos reverter a situação.

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  3. Ademir,

    Fantástico artigo!!!

    Muito bom mesmo, tanto que já compartilhei na minha rede de amigos, por e-mail, e no Facebook.

    Um forte abraço e obrigado pelos esclarecimentos!

    Anderson
    analisesespiritas.blogspot.com

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  4. Este comentário foi removido pelo autor.

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  5. É. Kardec já alertava que o Espiritismo já se basta por si mesmo.Não precisa de moletas científicas para manter firme seus postulados.O sujeito que o usa os conceitos de física quântica para justificar os conceitos espíritas,prova não conhecer a fundo,nem uma coisa nem outra.

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