30 de abril de 2013

IV - Como a parapsicologia poderia se tornar uma ciência. (P. Churchland)

Numa série de posts, apresentamos uma tradução comentada do artigo "How Parapsychology could become a science" (Inquiry: An Interdisciplinary Journal of Philosophy, Volume 30, Issue 3, 1987) do filósofo Paul Churchland. Este artigo é uma crítica epistemológica bem embasada à parapsicologia, crítica que deveria ser seriamente considerada pelos praticantes dessa disciplina, se eles pretendem, de fato, fazê-la avançar. Alem disso, Churchland lança dúvidas bem fundamentadas sobre o paradigma materialista presente. Vale a pena estudar com atenção este trabalho. Todas as referências dele serão apresentadas no último post. O texto em azul é do artigo.

3. Parapsicologia: o lado experimental.
Já tive a chance de expor minha principal crítica à tradição experimental da Parapsicologia. É uma crítica metodológica e ela em nada diz contra a honestidade ou o cuidado daqueles que conduzem os experimentos relevantes dela. A discussão até este ponto tem sido deliberadamente não crítica no que diz respeito à confiabilidade dos resultados experimentais em Parapsicologia.

Isso acontece porque a validade da crítica metodológica que fiz é bastante independente de quão confiáveis esses resultados são. Mas, seria errôneo da minha parte para com o leitor levá-lo a achar que quaisquer resultados dessa área devam ser aceitos. Certamente, nenhum deles é amplamente aceito fora da comunidade relativamente pequena da Parapsicologia. Não há análogo do movimento Browniano em que eles, tanto quanto nós, possamos confiar.

De fato, não está claro que eles tenham qualquer resultado positivo e replicável absolutamente (1). A história dessa área está cheia de escândalos mais ou menos sérios, que vão das sessões fabricadas da década de 20 e 30, a manufatura deliberada de dados falsos pelo renomado S. G. Soal na década de 40, passando pela "psicofotografia" expertamente maquinada por T. Serios na década de 60 até a os experimentos mal controlados de R. Targ e H. Puthoff ao redor de Uri Geller (um não declarado, mas bem treinado mágico) nos anos 70. Essas e outras óperas cômicas já foram bastante discutidas em outro lugar (Randi, 1982) e, portanto, não vou me ocupar com elas aqui (2). Mas, elas merecem ser citadas não porque foram escândalos. Esses casos são lições importantes porque foram tomadas em grande conta na época em que apareceram como formando as melhores evidências para os fenômenos paranormais já obtidos. E elas merecem também ser comentadas porque as fragilidades que acabam revelando são endêmicas na alma humana.

Por outro lado, não podemos rotular todo mundo de tolo, nem mesmo a maioria. Parapsicólogos frequentemente reportam resultados completamente negativos e que melhor testemunho de honestidade do que esse? O que queremos saber é o que devemos fazer com aqueles poucos estudos que foram aparentemente conduzidos com integridade e zelo escrupuloso e que mostram, estatisticamente, desvios significativos em relação àquilo que pensamos ser fisicamente explicável?


Não há resposta completamente geral que seja adequada a essa questão. Cada caso deve ser tratado em seu próprio mérito. Mas, uma coisa podemos exigir, antes de ficarmos empolgados com qualquer um deles, é que possam ser replicados (3), preferivelmente por um laboratório independente. As razões para isso não tem nada a ver com estupidez ou falsidade. Se, durante cinco anos de pesquisa parapsicológica, 1000 experimentos estatísticos forem realizados com honestidade e cuidado máximo, estamos certamente no caminho de se obter uma percentagem muito pequena de casos que se aproximam ou excedem o nível de "significância", com base apenas em fundamentos estatísticos. Isso significa que haverá uma pequena quantidade de resultados "positivos", mesmo que isso nada tenha a ver com o paranormal e ainda que os investigadores tomem o máximo de cuidado com os protocolos experimentais (4).


Esses resultados positivos, supomos, serão publicados. Mas veja só. Se 500 dos 1000 experimentos originais foram esquecidos porque os investigadores desapontados decidiram seguir carreira em outra direção; e se 400 dos 500 remanescentes foram esquecidos porque eles também deram resultado negativo e os investigadores procederam apenas à análise dos 100 restantes e se; desses, 80, embora submetidos da forma mais honesta possível, nunca são publicados porque os editores se tornaram impacientes com resultados parapsicológicos ainda mais negativos, então os resultados "acidentalmente significativos" de, digamos, 3 ou 4 experimento dos 1000 originais serão considerados contra uma amostra de apenas 20 experimentos publicados. Assim, esses últimos herdarão uma significância imerecida (5).

A única maneira de revelar esses acidentes estatísticos (e casos reais, insistimos, são inevitáveis) é justamente repetir aqueles que se mostraram significativos e ver se os resultados originais são reobtidos. Pelo que sei, nenhum resultado genuinamente anômalo sobreviveu a tal teste. Há, naturalmente, muitos resultados surpreendentes que foram e continuam a ser replicados, frequentemente na grande mídia ou em fóruns públicos. Mas, embora impressionantes, eles não são parapsicológicos (6). 

O caminhar sobre brasas é um exemplo. Ele tem sido realizado centenas de vezes em muitas culturas diferentes e é frequentemente associado a fatos paranormais. Existe um "instituto de autoajuda" aqui na minha comunidade que mantém sessões de caminhar sobre brasas na praia nas primeiras horas da manhã. Tais sessões são consideradas a culminação de seminários de autoajuda de cinco horas de duração e o objetivo deles é mostrar ao público pagante o que eles aprenderam sob a tutela de seus mentores, fazendo-os caminhar vivamente sobre uma cama cuidadosamente preparada com carvão em brasa. Alguns caminhantes adquirem bolhas nos pés com a experiência, mas a maioria deles não e eles, naturalmente, ficam impressionados com o espetáculo. A explicação que é passada para eles é que eles aprenderam a amplificar seus "campos biomagnéticos" que estão em volta de seus pés e que serve para protegê-los do calor.

Isso é uma bobagem sem tamanho, naturalmente, mas o carvão está, de fato, a uma temperatura bem alta.  Embora já estejam bastante consumidos, eles ainda podem ser vistos avermelhados, pelo menos na escuridão. O truque é que não há truque. Nesse estágio de combustão elevada, o carvão tem a densidade do isopor e uma capacidade térmica bem baixa. Embora a temperatura seja alta, o carvão simplesmente não contém energia térmica suficiente e não pode conduzi-la aos pés rápido o suficiente para causar queimaduras sérias nos quase 1,6 segundos de contato total dos pés com o carvão (quatro passos de 0,4 segundos cada). As pessoas pensam que podem ser queimadas por qualquer coisa, mesmo que minimamente incandescente, mas nem sempre isso é verdade. A camada de carvão deve se preparada com muito cuidado, entretanto, então eu não recomendo fazer isso por si mesmo, especialmente com lascas de carvão vegetal, o material mais à mão provável. Eles são mais quentes do que brasas de madeira e eles se partem liberando mais calor. Não tente sequer pisar neles.

O que recomendo é tentar o seguinte. No escuro, de forma que você possa melhor julgar o estado de aquecimento do carvão, pegue uma lasca quase em extinção com uma pinça de churrasco e toque-a levemente com a palma da mão ou planta do pé. Esse tipo de experiência permite grande nível de controle e é bastante seguro. Você ficará surpreso em ver o quão benigno é essa operação com o carvão, ao menos para tempos de contato menor que meio segundo. Caminhar sobre brasas é não só real como replicável, mas não é paranormal (ver Leikind and McCarthy,1985; P. M. Churchland 1986b).

Outro espetáculo comum é do tipo de leitura de mente clarividente que é encenado por mágicos da mídia, profissionais ou não. Aqui, não posso dar nenhum resumo de quão intricadas são essas performances: mágicos tem inúmeras maneiras de nos enganar. Mas, posso comentar algo sobre isso a fim de dar uma amostra de como  se parece.


Minha esposa e colega, Patricia Churchland, uma vez deslumbrou sua classe de filosofia lendo em voz alta e com olhos fechados frases escritas em uma pilha de envelopes bege que um estudante tinha passado para ela no começo da aula. Em cada ocasião de "leitura clarividente" de um envelope ainda fechado, ela perguntava se qualquer estudante teria submetido uma frase anunciada. Enquanto o estudante em questão manifestava incrível concordância, ela abria o envelope para checar casualmente a precisão de sua leitura e, então, passava para o próximo envelope e à adivinhação de seu conteúdo (7).

Ela conseguia acertar tudo. O truque é bem impressionante e exige apenas a colaboração de um estudante entre o grupo, alguém que falsamente concorde com o sucesso da "leitura" do primeiro envelope. De fato, ela apenas compensava sua primeira leitura com base na confirmação explícita do estudante em quem confiava. Enquanto abria o envelope para "checar a precisão" de sua primeira leitura, ela estava na verdade lendo o que outro estudante perfeitamente honesto tinha escrito no primeiro envelope. Essa frase era a base para a segunda "leitura". Enquanto mantendo o segundo envelope misteriosamente diante de si, ela anunciava o conteúdo do então primeiro envelope. O autor do conteúdo daquele envelope então confirmava com admiração o "sucesso" da leitura e o envelope era simultaneamente aberto para "checar" o acerto. Isso fornecia a base para a terceira leitura e assim por diante, até completar toda a pilha. O resultado era uma classe de estudantes em completo pandemônio. Poderes psíquicos evidentemente são mais fáceis de se obter do que se pode imaginar. 

Esses dois exemplos, leitura psíquica e caminhar sobre brasas não tem relação direta com a Parapsicologia acadêmica. Mas, eles ajudam-nos a ver como fenômenos paranormais ostensivos podem ser facilmente criados a partir do normal e do ordinário (8). E eles ajudam a nos armar contra os predadores dessa área, que são muitos. Devemos ter simpatia por aqueles que tentam fazer pesquisa paranormal responsável em relação às bobagens anunciadas pela mídia, práticas de culto e a atividade de exploradores inescrupulosos. É o mesmo que tentar um serviço legítimo de acompanhamento numa zona de meretrício declarado. Qualquer policial de passagem poderia se livrar de uma suspeita inicial, assim como de uma segunda e terceira suspeitas.

Comecei este trabalho perguntando se a Parapsicologia poderia se tornar uma ciência. Minha resposta é que ela precisa de uma teoria que a organize. E ela também precisa de uma tradição experimental que objetive a tarefa positiva de testar e refinar uma teoria geral alternativa da mente, ao invés de se dedicar a tarefa negativa de encontrar buracos inexplicáveis no materialismo. Parapsicólogos ainda não forneceram o material conceitual necessário para a construção desse programa de pesquisa coerente e bem motivado, mesmo admitindo que o materialismo é, de fato, falso. Essa é a razão porque a Parapsicologia ainda é uma pseudociência.

Notas

1 – Como Churchland segue no ‘vácuo teórico’ da Parapsicologia, a dúvida torna-se companheira inseparável dele, o que permite questionar a existência de fenômenos autênticos.

2- No caso de Ted Serios, não é verdade que o ‘admirável Randi’ tenha conseguido replicar as psicopictrografias dele.  O caso de Ted Serios está envolvido em um mistério e merece, por si, um estudo a parte. O que Churchland questiona principalmente é o caráter de ‘espetáculo’ que muitos eventos anômalos são revestidos, o que traz, naturalmente, suspeitas sobre sua validade e real existência na mente dos céticos, suspeitas que são amplificadas pelo caráter comercial em que se revestem os espetáculos. 

3 – A ‘replicação’ a que Churchland se refere aqui vem na esteira da suposta necessidade da Parapsicologia se comparar a uma ciência ordinária. No caso dessas ciências, a facilidade, simplicidade e o caráter ‘automático’ dos fenômenos confere facilmente a característica de reprodutibilidade. Isso não pode ser exigido dos fenômenos psíquicos, o que Churchland parece ignorar largamente.

4 – Veja que o caminho seguido pela Parapsicologia acadêmica, o de se dedicar ao estudo quantitativo de arranjos ‘paranormais’ leva inexoravelmente a essa crítica de Churchland. De fato, do ponto de vista puramente estatístico, em lançamentos sucessivos de uma moeda, há uma chance não nula de que várias faces ‘cara’ apareçam sucessivamente. Isso é um resultado meramente acidental e nada tem a ver com ‘paranormalidade’ a exigir necessariamente uma explicação do tipo 'psicocinése'. Esse ‘ruído’ estatístico deve ser obrigatoriamente suprimido ou isolado se o objetivo for expor, por meio desse método particular, a realidade de eventos paranormais. Trata-se, assim, de mais um escolho ao desenvolvimento da Parapsicologia, que fornece aos críticos muitos argumentos fortes.

5 – Notamos que essa observação crítica de Churchland também vale para qualquer outro fenômeno natural raro e não apenas aos de natureza parapsicológica. Ele representa uma crítica metodológica grave no caso da Parapsicologia, uma vez que o caminho de 'comprovação' escolhido envolve separar o efeito genuíno do ruído estatístico inerente em qualquer tipo de experimentação de múltiplas tentativas.

6 – Nessa classe estão, naturalmente, os fenômenos mediúnicos ostensivos que foram renegados pela corrente acadêmica e experimental da Parapsicologia por representarem eventos anômalos difíceis de serem replicados em laboratório.

7 – Essa simulação de leitura psíquica é, naturalmente, um truque que fornece combustível aos críticos da fenomenologia paranormal, mas que, obviamente, cai na classe das explicações muito fáceis. De fato, qualquer fenômeno natural pode ser imitado por truque e não apenas os fenômenos psíquicos. 

8 – Ver comentário 7.

As referências desse artigo podem ser encontradas em:

Churchland P. M. & Churchland P. S. (1999) On the Contrary, critical Essays, 1987-1997", A Bradford Book, 1st edition.

Referências

Leikind, B. J., and W. J. McCarthy (1985) An investigation of firewalking. The Skeptical Inquirer, 10, no. 1:23-35.

Feyerabend, P. K. (1963b). "How to be a good empiricist-A plea for tolerance in matters epistemological". In Philosophy of science: The Delaware seminar. Vol. 2, edited by B. Baumrin. New York: Interscience Publications, 3-19. Reprinted in Brody B., ed. 1970, Readings. in the philosophy of science. Englewood Cliffs, N.J.: Prentice Hall, 319--42. Also in Morick H., ed. 1972, Challenges to empiricism. Belmont, Calif.: Wadsworth, 164-93.

Leikind, B. J., and W. J. McCarthy (1985) An investigation of firewalking. The Skeptical Inquirer, 10, no. 1:23-35.

Randi, J. (1982) Flim-flam! Psychics, ESP, unicorns, and other delusions. Buffalo, N.Y.: Prometheus Books.








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