30 de dezembro de 2010

Crenças Céticas IX - Como refutar qualquer coisa que você não gostar.


Uma das melhores lições que se pode ter da literatura cética é sobre como tratar a evidência, fatos ou dados que estejam em conflito com suas próprias crenças, de forma tal que apenas o seu ponto de vista seja válido.

Uma estratégia comum de desmascaramento é apresentar conjecturas 'ad hoc' para descartar qualquer evidência de uma afirmação X. Essa estratégia funciona como método retórico para se ganhar uma argumentação (especialmente se os leitores estiverem inclinados a pensar como você), mas está longe de ser um argumento científico, porque, em ciência, hipóteses alternativas devem ser testadas, não meramente assumidas como possíveis.

Por exemplo, se cientistas estiverem buscando a causa do mal de Parkinson e a evidência confirmar a hipótese de que níveis de dopamina tem um papel fundamental nessa causa, não cai bem para um 'cético da Dopamina' dizer "Bem, é possível que outras causas desconhecidas existam, você não pode concluir que a dopamina seja importante, porque há outras explicações. Você está apenas manipulando as estatísticas."

Com certeza outras explicações são possíveis, mas nosso cético aqui não pode esperar que cientistas levem a sério o que diz, a menos que ele forneça evidências a favor de sua alternativa (antidopamina), isto é, a menos que ele forneça evidência de que 'outras explicações' podem dar conta da doença de Parkinson e tornar a hipótese da dopamina desnecessária ou implausível.

Uma opinião gerada no conforto do sofá sobre cenários imaginários ou possibilidades 'ad hoc' não é nem hipótese científica nem mesmo uma alternativa de hipótese. Somente se deve tomar tais alternativas seriamente se forem testadas ou confirmadas, ou, ao menos, se existir evidências independentes que façam a hipótese alternativa algo plausível ou relevante para aquele caso específico.

Por exemplo, para confirmar a 'hipótese psi' (sobre a existência de capacidades paranormais), você não precisa excluir qualquer outra possibilidade lógica ou cenário imaginário, porque possibilidades lógicas são, por definição, sempre possíveis e a imaginação é livre e ilimitada.

Hipóteses são confirmadas por suas consequências e predições. Se a 'hipótese psi' prediz, por exemplo, que certos cães irão manifestar determinados comportamentos (como no caso da pesquisa de R. Sheldrake), então a hipótese fica confirmada se tais cães manifestarem aquele comportamento por ela previsto. (Confirmado não significa que seja verdade absoluta, mas simplesmente que os dados empíricos a confirmam, pedem por mais pesquisa e que ela seja aceita de forma provisória).

Será que isso exclui outras alternativas ou outras possibilidades imaginárias? Não, mas possibilidades alternativas tem que ser confirmadas e testadas (ou demonstradas como plausíveis naquele caso específico) para que sejam aceitas como reais e pertinentes, não simplesmente assumidas com verdade porque um crítico de sofá não quer aceitar - por quaisquer razões ideológicas - o que a hipótese diz. Caso contrário, seria possível então rejeitar de forma arbitrária um resultado empírico a favor de qualquer hipótese usando de trucagem retórica com base em qualquer outra possibilidade ad hoc imaginável.

Para deixar esses pontos ainda mais claros, vamos supor que estamos examinando a afirmação "Jader Sampaio é o autor do blog espiritismocomentado.blogspot.com".

Uma foto e evidências facilmente refutáveis: será mesmo que Jader Sampaio é o autor de espiritismocomentado ?

Mas suponha que, dado minha filosofia pessoal, ideologia ou visão do mundo, eu queira desacreditar tal afirmação porque, para mim, é simplesmente impossível (isto é., estou certo que Jader Sampaio não existe, ou porque eu acho que ele não sabe usar um computador e, portanto, jamais poderia ter um blog).

Evidências são fornecidas a favor da ideia de que Jader Sampaio é na verdade o autor de tal blog:
  • O blog tem uma foto dele e um logo que ele criou;
  • Em uma determinada entrevista, um sujeito chamado 'Jader Sampaio' diz que aquele blog é dele mesmo;
  • O endereço IP (e outras informações técnicas) mostram que o blog pertence a alguém chamado 'Jader Sampaio';
  • Outros sites têm links para esse blog com a frase 'Blog de Jader Sampaio';
Se eu quiser refutar a tese de que espiritismocomentado é de Jader Sampaio, posso usar o truque da 'possibilidade lógica/explicação ad hoc/cenário imaginário de sofá' e descartar ou rejeitar as evidências acima:
  • Com relação ao nome e ao logo, posso dizer que isso nada prova porque qualquer pessoa pode fazer um blog e colocar como autor 'Jader Sampaio' e ainda fazer um logo parecido;
  • Com relação à entrevista, posso dizer que se trata de uma evidência anedótica e, portanto, inválida. Além disso, é possível que o sujeito em questão esteja simplesmente mentindo que seu nome seja Jader Sampaio. E, ainda que eu aceite que seu nome seja este, isso nada prova que o blog é dele. De qualquer forma, é apenas 'um testemunho' e, portanto, sem muito valor do ponto de vista científico;
  • Com relação ao endereço IP, posso afirmar que isso nada prova, porque é possível falsificar um endereço IP ou qualquer outra informação técnica como aquelas relativas a computadores ou um servidor específico;
  • Com relação aos links de outros sites para o tal blog e a referência como um 'blog de Jader Sampaio', posso mais uma vez dizer que isso nada prova, porque isso pode ser forjado também. De qualquer forma, é uma evidência anedótica (para um cético empedernido e racional como eu, isso nunca prova nada).
Note que os argumentos acima podem muito provavelmente ser motivados pelo meu desejo de desacreditar (especialmente, se eu sou alguém que mantém uma ideologia ou filosofia que pregue a inexistência de um tal Jader Sampaio). Mas, também, esses são argumentos baseados em especulações de sofá não provadas relativas a outras 'possibilidades' ou cenários imaginários que eu uso para invalidar qualquer evidência ou fato que me é apresentado. 

Note também que todas as possibilidades apresentada por mim são perfeitamente possíveis. Mas isso não as faz verdadeiras em nenhum caso específico. Para saber se tais especulações são verdadeiras, evidências que as suportem devem ser apresentadas (por exemplo, que um hacker tenha forjado um endereço IP em um servidor específico para falsificar também um nome como 'Jader Sampaio').

Se eu afirmar que um fator X causa um 'habilidade psi' em laboratório, então estou fazendo uma afirmação empírica positiva e, se eu sou um cientista, tenho que testar minha afirmação a respeito desse tal fator X para saber se isso é certo ou não (se não estiver correta, minha afirmação é cientificamente inútil contra objeções válidas de cientistas que obtenham evidências positivas para a hipótese psi); não basta simplesmente assumir isso sem evidência empírica. Obviamente, se eu quiser desacreditar a existência de uma habilidade psi, então estarei bastante motivado a aceitar qualquer alternativa ad hoc, mesmo que ela não tenha sido testada  ou confirmada. Mas, nesse caso, não estou mais a fazer ciência, estou simplesmente protegendo minhas crenças com especulações ad hoc e post hoc. Basicamente, estou racionalizando minha fé contra a existência de uma determinada coisa que eu não goste. Isso é, em essência, chamado de wishful thinking disfarçado como retórica científica.

Finalmente, como um exercício intelectual, imagine que você não acredite em uma determinada afirmação (você é livre para escolher qual afirmação será). Você descobrirá, então, se usar especulações ad hoc criativas, que sempre será capaz de se livrar de evidências que sejam contrárias as suas crenças. Quanto mais inteligente e esperto você for, tanto mais criativas e persuasivas serão suas 'especulações ad hoc'. Mas isso não muda o fato de que você está se enganando a si mesmo com um método sofisticado de racionalização de dados, fatos e evidências que desafiem suas crenças.

Em outras palavras, você está usando sua própria inteligência e razão para se enganar. Ao invés de usar isso para encontrar a verdade, você está usando sua capacidade para racionalizar ou proteger suas tendências, preconceitos ou preferências pessoais contra qualquer possibilidade de refutação. É um processo sofisticado de auto ilusão (que também impede que você perceba que esta se enganando).

Ninguém pode estar 100% livre de ser tendencioso ou de truques mentais para evitar essa 'dissonância cognitiva'. Mas, se você ama realmente a verdade, você certamente fará um esforço para controlar sua mente e manter seus preconceitos sob controle consciente. Aprenderá então bastante sobre sua própria mente, e também sobre a mente dos outros.

Este é um texto traduzido  e adaptado do original 'How to debunk any claim that you want to disbelieve', acessível em http://subversivethinking.blogspot.com/2009/04/how-to-debunk-any-claim-that-you-want.html

21 de dezembro de 2010

Crenças Céticas VIII - Alfred Wegener e a fraude dos continentes flutuantes.

Alfred Wegener.
O "impossível" é geralmente fixado por nossas teorias, não definido pela Natureza. Teorias revolucionárias habitam no inesperado.

(...) À medida que a ortodoxia Darwinista varria a Europa, seu mais brilhante oponente, o embriologista já velhinho Karl Ernst von Baer disse com amarga ironia que toda teoria triunfante passa por três estágios: primeiro ela é descartada como uma inverdade, então é rejeitada como contrária à Religião e, finalmente, é aceita como dogma e todos os cientistas dizem que sempre lhe apreciaram a verdade. Stephen J. Gould ("Ever since Darwin", Penguin books, 1991)

Continentes que flutuam como barcos no oceano? Então, o solo que pisamos não se mostra firme, robusto, desde a criação da Terra? Talvez a imensa maioria das pessoas não saiba, mas o chão que nós pisamos todos os dias, sobre o qual dirigimos nossos carros ou praticamos esportes está em movimento. Quando criança, me divertia ao constatar, olhando os mapas das aulas de geografia, que a costa oriental da América do Sul encaixava-se, como se fosse um quebra-cabeças, com a costa ocidental da África. Na minha falta de compreensão, não achava que isso seria mera coincidência, mas ignorava totalmente como aquilo poderia ter acontecido.

Essa observação infantil talvez não tenha passado em vão aos primeiros cartógrafos que, da mesma forma que eu, não conseguiram imaginar uma causa simples para semelhante “coincidência”.

De qualquer maneira, a ideia de que os continentes flutuam sempre foi considerada uma heresia científica ou, usando termo mais modernos dos céticos, uma "pseudociência". Evidências alinhadas por seu grande proponente, Alfred Wegener (1880-1930), foram completamente desprezadas e ridicularizadas como erros, incongruências de alguém que, não sendo geólogo, jamais poderia se aventurar em tal campo. Avaliar e estudar a saga de Wegener na defesa da teoria dos continentes flutuantes oferece ao estudioso uma oportunidade para compreender a maneira como a ciência é fabricada e as consequências do ceticismo no seu desenvolvimento.

Diz-se que o ceticismo é importante nas ciências. Ele teve um impacto relativamente profundo na história desse herói que foi Wegener. Ninguém melhor que o paleontólogo e biólogo evolucionista S. J. Gould (1941-2002) para nos contar essa estória, que fala tanto das certezas como das dúvidas no processo de fabricação do conhecimento. O texto abaixo (em azul) é uma tradução nossa de trechos do Cap. 10, Continental Drift, de 'Even Since Darwin' (Penguin books, 1991):

Por que tal profunda mudança (no pensamento científico) teria ocorrido em tão curto espaço de tempo, como em uma década? (Referindo-se à mudança na opinião dos cientistas sobre a teoria de Wegener) 
Muitos cientistas sustentam - ou ao menos argumentam opinião para o público - que sua profissão marcha para a verdade sob a orientação de um procedimento infalível chamado 'método científico'. Se isso fosse verdade, minha questão teria fácil resposta. Os fatos, tais como se apresentavam 10 anos atrás, falavam contra o deslocamento dos continentes; desde então, aprendemos mais e revisamos nossa opinião de acordo com tal aprendizado. Argumentarei que tal cenário não pode ser aplicado de forma geral e é profundamente impreciso nesse caso. (...)

Considero essa estória como típica do progresso científico. Novos fatos, colecionados de forma antiga sob a orientação de velhas teorias raramente resultam em qualquer revisão substancial do pensamento. Fatos "não falam por si mesmos"; são interpretados à luz da teoria. O pensamento criativo, tanto nas ciências como nas artes, é o motor da mudança de opinião. A Ciência é uma atividade quintessencialmente humana, não é algo mecânico, uma acumulação robótica de informação objetiva, guiada por leis de lógica para uma interpretação inescapável. 
Duas são as fortes evidências a respeito da deriva dos continentes, que eram 'varridas para baixo do tapete' quando a teoria de Wegener era herética:

1. A glaciação no Paleozóico tardio. Cerca de 240 milhões de anos atrás, geleiras cobriam partes do que é agora a América do Sul, Antártida, Índia, África e Austrália. Se os continentes fossem fixos, tal ocorrência torna difícil explicar certos fatos. (...). Todas essas dificuldades evaporavam se os continentes austrais (incluindo a Índia) estivessem unidos durante o grande período de glaciação, e localizados mais abaixo, cobrindo o polo sul; as geleiras sul americanas moveram-se da África, não de um oceano aberto; a África 'tropical' e a Índia 'Semitropical' estavam próximas do polo sul; o pólo Norte localizava-se no meio de um grande oceano, de forma que geleiras não poderiam ter se produzido no polo norte; 

2. A distribuição de trilobitas cambrianos (artrópodes fósseis que viviam entre 500 a 600 milhões de anos atrás). Os trilobitas cambrianos da Europa e da América do Norte dividiam-se em duas faunas diferentes com uma distribuição bem peculiar nos mapas modernos. Trilobitas da província 'Atlântica' viviam por toda a Europa e em algumas áreas da costa mais oriental da América do Norte - (oriental e não ocidental). Newfoundland e o sudoeste de Massachusetts, por exemplo. Trilobitas da província 'Pacífica' viviam por toda a América e em alguns locais da costa ocidental da Europa - norte da Escócia e o noroeste da Noruega, por exemplo. É muito difícil dar conta dessa distribuição se os dois continentes estivessem distantes 3000 milhas um do outro.  
Mas a deriva dos continentes sugere uma estranha solução. Em épocas Cambrianas, a Europa e a América do Norte estavam separadas: trilobitas atlânticos viviam em águas pela Europa; trilobitas pacíficos em águas na América. Os continentes (agora incluindo sedimentos com trilobitas encrustados) moveram-se um na direção do outro até se juntarem. Mais tarde, se separaram novamente, mas não exatamente ao longo da linha de onde haviam se juntado. Restos espalhados da Europa antiga, contendo trilobitas atlânticos permaneceram na parte mais oriental da América do Norte, enquanto que algumas restos da velha América do Norte ficaram grudados na parte mais ocidental da Europa.


Em apenas alguns segundos, assista milhões 
de anos de deslocamentos nunca antes imaginados pelas gerações anteriores.
Tais exemplos são citados como "provas" da deriva hoje, mas eram sumariamente rejeitados nos anos anteriores, não porque os dados fossem menos completos do que hoje, mas porque ninguém imaginava um mecanismo que fizesse mover os continentes.

(...) Na verdade, a superfície da Terra parece estar dividida em menos de uma dezena de "placas" maiores, limitadas em ambos os lados por zonas de criação e destruição. Os continentes estão congelados entre tais placas movendo-se com elas à medida que o solo oceânico se afasta de zonas de criação. A deriva dos continentes não é mais orgulhosa de si, ela se tornou conseqüência passiva de nossa nova ortodoxia - a tectônica de placas.
Entretanto, até ganhar o status de ortodoxia, a teoria de Wegener sofreu o escárnio e a desconsideração. Ela hoje nos apresenta como um exemplo vivo que se contrapõe  a qualquer tentativa de estabelecer métodos rígidos na pesquisa científica e de que a Natureza não revela tão facilmente seus mais profundos segredos. Considerado como uma fraude, seu proponente não viu em vida sua aceitação pela comunidade científica, mas morreu acreditando nela e que, dentro em breve, todos haveriam de considerá-la seriamente.