30 de abril de 2011

Livro I - Introdução à Ciência Espírita de Aécio P. Chagas


No centenário de nascimento de Allan Kardec (2004), muitas obras foram publicadas em sua homenagem. Dentre elas, destaca-se a 'Introdução à Ciência Espírita' de Aécio Pereira Chagas. Com um estilo simples, o autor consegue abordar uma ampla gama de tópicos que fazem parte dos fundamentos da Doutrina Espírita, suas consequências morais e filosóficas. Um livro com 156 páginas - pouco se considerarmos a vastidão da temática espírita - é bem uma introdução ao assunto.

Para se ter uma ideia dos temas abordados por esta obra, basta que consideremos seu índice: 1 Introdução, 2 - Concepção espírita do ser humano, 3 - Fluidos - I (há dois capítulos separados para o tema 'fluidos'), 4 - Perispírito, 5 - Animismo, 6 - Mediunidade, 7 - Fluidos II, 8 - Efeitos Físicos, 9 - Fluidoterapia, 10 - Evolução e Tempo (que discorre sobre o importante princípio da reencarnação), 11 - Conclusão.  Há ainda 2 apêndices: um sobre o conceito de religião e outro que trata de um resumo histórico do Espiritismo.

Antes do 1o Capítulo, no 'Prólogo', o autor, que é pesquisador acadêmico conceituado, discorre sobre a noção de 'ciência espírita'. Essa noção certamente tem consequências para a noção de universidade e centro de pesquisa acadêmico. De forma bem direta, o autor considera:
As universidades são importantes instituições de ensino e pesquisa, cujas atuais caracteristicas têm cerca de duzentos anos. Formaram-se após a Revolução Francesa (ou Burguesa) sobre as ruínas das universidades medievais. Estas eram centradas na teologia e as novas universidades centram-se nas ciências da matéria: física, química, biologia. Sua ideologia, ou seja, o conjunto de idéias que definem sua estrutura, objetivos, funcionamento etc, é praticamente positivista. Ela é, em sua essência, materialista. Creio que, dentro desta concepção de universidade, nela não cabe o espiritismo.
Essas considerações certamente têm consequências sobre a opinião particular dos que pensam ser possível acomodar a pesquisa espírita dentro dos modelos atuais de centro de pesquisa e universidades. Sendo, pois, a pesquisa acadêmica essencialmente centrada na busca e explicação de fenômenos materiais, é bastante lógico compreender porque existe grande resistência em meios acadêmicos a estudos de outras naturezas. O de uma determinada universidade estar vinculada  a uma religião (como ocorre com as universidades católicas, por exemplo) em nada modifica esse quadro:
Existem universidades vinculadas a algumas religiões: universidades católicas, protestantes, judaicas, entre outras. Pergunto ao leitor, como são elas? No que diferem das universidades não confessionais?
Finalmente, ancorado nessa lógica o autor afirma: A ciência espírita foi feita e está sendo feita nos centros espíritas. O autor explica:
Acho que a pesquisa espírita não foi feita e não está sendo feita nos centros de metapsíquica ou de parapsicologia, que não satisfazem os requisitos da atividade científica, pois elas não contêm uma teoria. Muitos dos notáveis pesquisadores do passado, que trabalharam no estudo da fenomenologia mediúnica, não fizeram ciência espírita, ou melhor, não fizeram ciência nenhuma, pois não possuiam uma teoria. É interessante que alguns até se tornaram espíritas no fim de seus trabalhos.
Do ponto de vista das modernas teorias do conhecimento, a existência de uma teoria - que desenvolve e orienta a pesquisa - é um quesito fundamental para que haja verdadeira ciência. Em um ambiente cercado de ceticismo com relação ao objeto de estudo (que é o Espírito) como haverá de se desenvolver nosso conhecimento sobre o assunto? Este é um ponto fundamental que não pode ser desconsiderado.
  
Ao longo do livro, o autor discorre sobre vários conceitos espíritas - essencialmente fundamentados em 'O Livro dos Espíritos' e 'O Livro dos Médiuns' de A. Kardec por meio de muitas figuras (ou 'esquemas') que, embora não sofisticadas, conseguem explicar os conceitos e que dificilmente encontramos em outros obras. Além disso, o livro apresenta diversos 'exercícios' que orientam o leitor no estudo de obras complementares. Por exemplo, ao final do capítulo 6 (sobre mediunidade) são propostas várias questões. Destacamos uma delas: 6.3 - Um médium sonambúlico 'que vê' é vidente ou clarividente? Tal proposta faz de 'Introdução à Ciência Espírita' um livro diferente de muitos outros, um livro que tem uma proposta pedagógica. 

Interessante e elucidativa é a proposta do autor de explicar os fenômenos físicos através de um capítulo dedicado. Por serem ocorrências que se distanciam dos fatos ordinários, esses são os mais considerados pelos adeptos da teoria do 'embuste'. Em particular, o autor esclarece os fatos da década de 60 em Uberaba, MG, em torno da mediunidade de efeitos físicos de Otília Diogo. Ele faz isso não como alguém que 'ouviu falar do assunto', mas como quem teve contato direto com testemunhas dos fatos: 
Em uma  dessas reuniões, esteve presente também uma equipe de repórteres da revista O Cruzeiro, na época, era o semanário de maior circulação no país. A primeira reportagem publicada pela revista foi fiel aos fatos observados. A segunda, uma semana depois, procurou apresentar tudo como se fosse uma fraude. 
Mesmo assim, em determinados  assuntos, sentimos que o autor foi algo resumido demais. Um exemplo, é o tema 'prece' do capítulo 9 'Fluidoterapia'. O assunto, em nossa opinião, é de certa importância e muito se beneficiaria de maior aprofundamento com o estilo didático do autor.

No último capítulo (11 - Conclusão), o autor trata da noção de prova científica de outras questões ligadas ao assunto e sua relação com os fatos espíritas. Basta considerarmos as perguntas feitas pelo autor no capítulo citado: 'Átomos e moléculas existem? Você já os viu ou os tocou? Como provar que eles existem?, para que tenhamos uma idéia de que a noção de prova na ciência e, principalmente, na ciência espírita, não tem o mesmo status das 'evidências' das ciências forenses ou criminais. O assunto requer muito estudo e uma visão dilatada que inclua a ideia de que muitas coisas no mundo existem apesar de não sensibilizam diretamente nossos sentidos ordinários. 

'Introdução à Ciência Espírita' traduz em seu título, de uma maneira fiel, o que o autor desejou transmitir com ele: uma introdução didática a um tema que tem um grande futuro.
  
Detalhes bibliográficos:
Introdução à Ciência Espírita
Aécio P. Chagas
156 páginas
Biblioteca de Ciência e Espiritismo
Editora Lachâtre (http://www.editora3deoutubro.com.br)
1a Edição (2004)

24 de abril de 2011

Crenças Céticas XIV - "Afirmações extraordinárias requerem evidências extraordinárias."


"Pessoalmente, ficaria muito satisfeito se houvesse vida após a morte, especialmente se ela me permitisse continuar a aprender sobre este e outros mundos, se ela me desse a chance de descobrir como a história aconteceu". C. Sagan

Embora a sua aparência lógica, inexiste frase mais incongruente do que esta que serve de título deste post, atribuída ao astrônomo Carl Sagan Carl Sagan (1934-1996), membro fundador de uma importante seita de céticos. Por isso mesmo, ela veio a se constituir em um dos pilares da crença cética. (1)

C. Sagan foi bem meu herói de juventude: quem não se lembra da série 'Cosmos' no começo da década de 1980, com suas primeiras simulações computacionais, mostrando um viajante em suas viagens pelo Universo, de uma maneira acessível ao grande público? A série era primorosa e, mesmo hoje em dia, a maneira com que ele explica cada tópico em Astronomia deixa saudades. Mais  tarde, descobri que Sagan errava em alguns pontos com relação à história da ciência, o que é de pouca importância comparada a sua postura de defensor infatigável da ciência (lê-se academia) utilizando, entretanto, argumentação algo equivocada, que o levaria a tirar conclusões em contradição com sua visão materialista de ver o mundo. 

Sagan pretendia fazer algo muito importante: livrar a sociedade das trevas da ignorância medieval, do irracionalismo cristão que condenou tantos mártires considerados hereges à fogueira. Nisso talvez ele estivesse certo. Por isso, Sagan chega à conclusões belíssimas com relação a nossa verdadeira posição no Cosmos: no auge da gerra fria fez uso de uma foto tirada por uma das Voyager mostrando tudo aquilo que somos. Nada mais que um grão de areia perdido na imensidão do Cosmos.

'Pale Blue dot': foto da Terra de um ponto muito distante no espaço.
Para C. Sagan, o uso dessas imagens poderia demonstrar ao público
a verdadeira dimensão das disputas e pontos de vista humanos.

Sobre tal foto escreveu ('Pálido Ponto Azul'):
Olhem de novo para aquele ponto. É ali. É a nossa casa. Somos nós. Nesse ponto, todos aqueles que amamos, todos os que conhecemos de quem ouvimos falar, todos os seres humanos que já existiram, vivem ou viveram as suas vidas.
Toda a nossa mistura de alegria e sofrimento, todas as inúmeras religiões, ideologias e doutrinas econômicas, todos os caçadores e saqueadores, heróis e covardes, criadores e destruidores de civilizações, reis e camponeses, jovens casais apaixonados, pais e mães, todas as crianças, todos os inventores e exploradores, professores de moral, políticos corruptos, “superastros”, “líderes supremos”, todos os santos e pecadores da história de nossa espécie, ali - num grão de poeira suspenso num raio de sol.
A Terra é um palco muito pequeno em uma imensa arena cósmica. Pensem nos rios de sangue derramados por todos os generais e imperadores para que, na glória do triunfo, pudessem ser os senhores momentâneos de uma fração deste ponto. Pensem nas crueldades infinitas cometidas pelos habitantes mal distinguíveis de algum outro canto em seus freqüentes conflitos, em sua ânsia de recíproca destruição, em seus ódios ardentes.
Nossas atitudes, nossa pretensa importância, a ilusão de que temos uma posição privilegiada no universo, tudo é posto em dúvida por este ponto de luz pálida. O nosso planeta é um pontinho solitário na grande escuridão cósmica circundante. Em nossa obscuridade, no meio de toda essa imensidão, não há nenhum indício de que, de algum outro mundo, virá socorro que nos salve de nós mesmos. 
Carl Sagan - (de “Um pálido ponto azul”, 1994)
Entretanto, Sagan frequentemente afirmava que a sociedade, que passou a depender da Ciência e da tecnologia, sem saber o que isso significava de fato, deveria arraigar-se ao cientificismo que, segundo ele, era a única coisa que poderia salvar a Terra e a sociedade, tanto de uma hecatombe nuclear como num retorno à Idade Média e de suas fogueiras. Desta forma, Sagan fazia da ciência uma plataforma de pregação de suas crenças céticas e se voltava contra qualquer coisa que não se adequasse à visão corrente resultante de interpretações das teorias científicas, algo que é estranho à atividade científica em si.

Não é papel da Ciência fazer pregações sobre como a sociedade deva se comportar.  A Ciência deve ser sempre neutra em sua visão do mundo porque, da humildade resultante de quão pouco sabemos, apesar de termos progredido tanto em conhecimento, vem a conclusão que inexiste limites para o que podemos aprender com o Cosmos. Encontra-se assim uma contradição no pensamento de Sagan: enquanto afirmava categoricamente que o Universo era infinito em muitas possibilidades, ele negava veementemente a possibilidade de muitos outros fatos que ele considerava crenças pseudocientíficas. Para Sagan, o Cosmos era tudo o que existia e era ilimitado, mas não tanto assim a ponto de validar determinadas crenças que entravam em conflito com as suas próprias. 

Isso fica bem claro na sua visão sobre a Astrologia: dizia que 'os jornais do mundo trazem todas as semanas horóscopos, mas dificilmente notícias sobre o Universo' (isso era uma verdade na década de 1980, mas hoje, com a internet, jornais dedicam muitas reportagens à pesquisa científica). Pretendia que as pessoas comuns, que não escolhem carreiras científicas em suas vidas, tivessem pela Ciência o mesmo interesse que tem por Astrologia. Acontece que essa é uma expectativa ingênua: a Ciência nada tem a dizer sobre o sentimento ou temores das pessoas, enquanto que as colunas astrológicas aparentemente tem (mesmo que sejam na forma de frases auto evidentes). A Ciência jamais será tão popular quanto novelas ou histórias românticas, porque o ser humano tem sentimentos, expectativas, temores e esperanças para as quais a Ciência - principalmente aquela de C. Sagan -  jamais conseguirá dar respostas atraentes.

Em algum ponto de sua pregação cética nasceu o slogan sobre as 'afirmações extraordinárias e das evidências extraordinárias' (Ver nota (1)). Embora pareça uma frase lógica, tão lógica quanto: 'pessoas felizes tem vidas felizes' ou 'planetas rochosos tem densidades elevadas' (para usar um exemplo mais ao gosto de C. Sagan), trata-se de uma falácia lógica (non sequitur) que não tem base alguma na história da ciência. Basta que analisemos alguns exemplos para percebermos sua precariedade, o que ajuda a esclarecer um pouco como se dá o processo das descobertas científicas.

Primeiro há o problema com a definição de 'evidência extraordinária'. O que é uma 'evidência extraordinária'? Uma pessoa comum, tropeçando com uma pedra no chão, dificilmente reconhecerá nela qualquer sinal de um fóssil antigo, fato que um bom paleontólogo será capaz de fazer. Ou seja, uma 'evidência extraordinária' só é realmente em relação a um 'referencial de conhecimento'. Não há evidências extraordinárias de qualquer tipo para quem não acredita em nada ou não sabe nada. No âmbito da Ciência, uma evidência desse tipo só é verdadeiramente 'extraordinária' desde um ponto de vista muito especial e privilegiado, o ponto de vista de uma teoria particular. Na ausência desta, inexiste evidência alguma - ainda que a Natureza nos bombardeie diariamente com vários fenômenos.

Um exemplo interessante (embora distante de nossa realidade diária) foi a 'descoberta' das partículas elementares chamadas neutrinos. Elas foram 'postuladas', ou seja, imaginadas como existentes para explicar certas anomalias em  processos de desintegração radioativa, em particular o decaimento beta. Entretanto, nenhuma 'evidência extraordinária' foi encontrada na condições exigidas por muitos crentes céticos, pois os neutrinos não interagem com absolutamente nada, assim não podem ser detectados diretamente. A menos que tenhamos muitos bilhões de dólares para construir um detector de neutrinos (que consegue isso por métodos indiretos e de forma estatística), jamais teremos qualquer evidência de sua existência.
Pelo menos em física de altas energias,  'evidências extraordinárias
exigem orçamentos extraordinários'. A foto mostra um detector
de neutrinos (interior do LSND ou detector de neutrinos por
cintilação líquida em Los Alamos, USA).
O mais certo é dizer que, no estágio atual de desenvolvimento das Ciências da matéria, 'evidências extraordinárias exigem orçamentos extraordinários', tal é a quantidade de dinheiro necessária para que determinadas 'afirmações extraordinárias' tenham qualquer chance de serem consideradas. Céticos dogmáticos não se dão conta disso e pretendem generalizar a regra para todos os fenômenos da Natureza. E, mais importante ainda, não podemos deixar de reconhecer o papel fundamental das teorias que devem ser aceitas e trabalhadas. Sem elas é impossível desenhar ou projetar qualquer equipamento para tornar visíveis determinadas evidências. Assim, a Ciência verdadeira está longe de ser uma atividade imparcial, pelo menos no que diz respeito à crença que se deve depositar na validade de certas conjecturas a respeito do Cosmos.

Portanto, a frase de Sagan é retórica elegante mas sem fundamento. As contradições com diversas descobertas científicas são tão grandes que deixamos ao leitor a tarefa de encontrar outros exemplos na história da ciência.

Mesmo com essas constatações, não podemos deixar de admirar o brilhantismo e o esclarecimento que Carl Sagan prestou em seu papel de divulgador e como astrônomo. A maioria dos que pretendem seguir seus passos hoje, o fazem exagerando ainda mais no ceticismo e são quase todos desprovidos de sua elegante retórica. Sem a reverência que Sagan tinha pelo imensidade do Cosmos, pretendem ditar normas sobre o que é 'científico' ou não na visão deles, e seu argumento é usado para refutar o que céticos chamam de 'claims' de muitos fenômenos, que devem ser 'provados rigorosamente', o que inclui: exigências de farta repetibilidade (como se na Natureza não houvessem fenômenos estocásticos e raros), 'objetividade' e outros quesitos. 

Notas

(1) Segundo o site 'The Anomalist', a frase teria sido criada por Marcelo Truzzi (1935-2003). Junto com P. Kurtz, Truzzi fundou o "Committee for the Scientific Investigation of Claims of the Paranormal" (CSICOP), tendo se arrependido disso posteriormente:
"I might note here that it was Marcello, not Carl Sagan, who coined the often-misattributed maxim "Extraordinary claims demand extraordinary evidence." In recent years Marcello had come to conclude that the phrase was a non sequitur, meaningless and question-begging, and he intended to write a debunking of his own words. Sad to say, he never got around to it."