17 de novembro de 2012

Deus e suas Causas III: desdobra-se a imagem do Universo.

Em uma série de dois posts anteriores, vimos que a criação e o conceito de Deus como descrito em 'O Livro dos Espíritos' (1) é significativamente diferente da ideia que comumente se faz de um ser pessoal (para a maioria das visões religiosas). É uma alternativa para as concepções em que ele não se faz necessário (como o Ateísmo) porque torna dispensável esse atributo de "personalidade" para a Divindade. Exploramos o significado do conceito de 'causa primária', que existe mesmo na relação entre a origem de fenômenos simples. Frequentemente, teorias científicas versam sobre causas imediatamente ligadas aos fenômenos, mas o desenvolvimento científico também pode levar ao descobrimento de causas mais fundamentais (que seriam as causas primárias). 

A existência de outro elemento primário no Universo (o princípio inteligente) tem importância capital para compreensão da totalidade dos fenômenos que nos cercam e não apenas aqueles que impressionam diretamente os sentidos (ver questão #7 de 1). A existência do princípio inteligente está antevista na questão #23 de 1, que reproduzimos em sua totalidade:
23. Que é o espírito? 
"O princípio inteligente do Universo." 
a) - Qual a natureza íntima do espírito? 
"Não é fácil analisar o espírito com a vossa linguagem. Para vós, ele nada é, por não ser palpável. Para nós, entretanto, é alguma coisa. Ficai sabendo: coisa nenhuma é o nada e o nada não existe."
Enquanto não se reconhecer a existência desse princípio, coexistente e independente da matéria (que é outro princípio), não será possível avançar muito no desenvolvimento científico, uma vez que se procurará, em vão, mimetizar causas para os fenômenos inteligentes da Natureza por meio de arranjos materiais que serão insuficientes para dar conta de todas as peculiaridades observadas nesses fenômenos. 

Por outro lado, uma nova maneira de se compreender essa totalidade - base para futuros desenvolvimentos científicos - torna-se aparente a partir da compreensão da existência do princípio inteligente como uma causa fundamental e irredutível à matéria. A visão espírita da criação está sumarizada na Fig. 1 abaixo.
Fig. 1 Síntese da visão espírita da criação que compreende os elementos gerais primários que dela fazem parte. Ela não ocorreu em um momento apenas do tempo, mas é incessante. Acima de tudo está Deus como "causa primária de todas as coisas".

Observações sobre a visão espírita da Criação

Comparemos a Fig. 1 deste post com a imagem do primeiro post que invoca o Big-Bang como causa primária. Até agora a Ciência identificou no Big-Bang a causa primária de tudo o que existe em consistência com a noção científica presente para esse 'tudo'. Essa causa não apenas gerou o princípio material (que é reconhecido como único existente), mas também as Leis Universais em um ponto bem determinado no tempo. Para as teorias cosmológicas mais aceitas, a criação foi um processo bem determinado no 'tempo e no espaço' (na verdade ela marcou a criação do próprio tempo e do próprio espaço).

Entretanto, o Big-Bang (ou qualquer equivalente dele) é apenas uma causa intermediária na criação. A origem de tudo é Deus, como causa primária de todas as coisas. Além disso, essa criação é incessante (questão #21, 1). Abaixo de Deus, pode-se dizer que há três principais causas que podem ser tomadas como 'primárias': o princípio material, o princípio inteligente e as Leis Naturais. Vimos que as Leis Naturais também fazem parte das teorias cosmológicas científicas e constituem um desafio, já que não é suficiente apenas encontrar uma origem para a matéria, mas também para as forças ou leis que regem as relações entre partículas materiais e seus agregados que compõem os elementos materiais espalhados no Universo.

Mas, do mesmo modo que existem Leis Naturais que regem relações para a componente material do Universo, também há leis específicas para o princípio inteligente. Tais leis ditam como ele se relaciona e evolui ao longo do tempo. Não temos presentemente condições de especular com relação à natureza íntima desse princípio, mas sabemos de sua existência. Todas as preocupações da futura ciência do espírito deverão se concentrar em escrutinar essas leis e explicar os fenômenos espirituais que delas são decorrentes. Assim, em nossa figura, fazemos um paralelo entre a relação das leis com o princípio material - que dá origem aos fenômenos puramente materiais - e a relação do espírito com essas mesmas leis - que dão origem aos fenômenos espirituais.

Em nosso nível de apreensão  (2), as Leis Universais não apenas determinam as relações entre cada princípio separadamente, mas também como eles interagem entre si. Prevê-se assim uma interface espírito-matéria que é governada por princípios específicos (fluidos, questão #27, 1). Essa interface é rica em novos fenômenos e leis próprias.

Uma fonte primordial de informação no Universo

Atuando em nível superior aos dos princípios que regulam a interação entre os elementos materiais, o princípio inteligente é um dos responsáveis pela criação perene de informação no Universo. Essa informação se transfere através de linguagem especial em um processo de comunicação peculiar a esse princípio. Em constante interação com o princípio material do qual o princípio espiritual se serve como elemento sensorial, o princípio inteligente evolui por um processo que mal começamos a vislumbrar. Até que, decorridos talvez bilhões e bilhões de anos, esse princípio se individualiza e se torna Espírito, dono de uma consciência, personalidade e cosmo mental.

E, então, dotados de uma consciência, os Espíritos começam a indagar sobre sua própria origem. Em um Universo de grandiosos efeitos e infinitas causas, descobrimo-nos parte da criação e, ao mesmo tempo, criadores em escala microscópica. Que segredos ainda guarda a Natureza a respeito de nossa verdadeira origem? No nível em que nos encontramos, tateamos ainda nas trevas da ignorância, da presunção e da vaidade. Porém, acordados para o grande destino que nos reserva o tempo, vislumbramos a herança verdadeira de que tomaremos posse, a razão e fim - tanto quanto nos é dado saber - desse ato irreprodutível de Amor sem limites.  

Referências e notas

1 - 'A. Kardec (1857), O Livro dos Espíritos' (todas as citações seguem a versão do IPEAK);

2 - Dizemos que 'as Leis Naturais governam determinados fenômenos'. Entretanto isso é apenas uma maneira de se apreender as coisas, talvez apropriada para nosso nível de compreensão e, principalmente, sensibilidade. É provável que exista uma relação mais profunda da Causa Primária (Deus) com todas as coisas por ela criadas, de forma que as Leis Naturais sejam apenas manifestações tangíveis no nosso nível dessa  relação. Em nosso 'mundinho', tudo acontece como "se Deus estivesse ausente", porque não temos órgãos sensíveis para percebê-lo diretamente (questão #10, 1).

3 - Deus e suas Causas I

4 - Deus e suas Causas II - Causas primárias e secundárias

2 de novembro de 2012

O exercício da crítica sadia aos adversários do Espiritismo.

O conjunto de princípios ou fundamentos que formam a base para a doutrina que veio a ser conhecida como espírita é um conjunto de afirmações audaciosas sobre o mundo e nosso papel nele. Muitos desses princípios fizeram ou fazem parte de antigas tradições religiosas (como é o caso da reencarnação). Outros são mais novos e fornecem respostas lógicas e harmônica para velhas questões como: quem somo nós, de onde viemos e para onde vamos.  

Uma vez que a Doutrina Espírita é conhecimento que afirma algo categórico a respeito do mundo e sobre nossa real posição e importância nele, ela está bastante sujeita a críticas das mais variadas origens e interesses. De grupos religiosos que têm posição fundamentalista, até ultra céticos militantes do niilismo existencial (contra o qual o Espiritismo é notoriamente contrário), há muitos interesses que fazem oposição aos princípios espíritas. De novo, isso é bastante natural, afinal o Espiritismo afirma alguma coisa positiva sobre o mundo e tem utilidade reconhecida.  

Adeptos suficientemente esclarecidos a respeito dos princípios espíritas também devem estar cientes das responsabilidades morais que recaem sobre aqueles que apenas dizem seguir seus princípios.  É absolutamente impossível ser espírita (dizer-se espírita é outra coisa) sem levar em consideração o subconjunto de princípios que forma sua ética (ref 1). Assim, qualquer crítica que seja dirigida aos adversários do Espiritismo, por mais correta e isenta de erros que seja, jamais poderá ser exercida de forma a não observar esses princípios éticos, sob pena de ser uma atividade vazia e prejudicial às verdades que ela pretende defender. 

Para convencer adeptos disso, não bastariam palavras. Quis o destino e a  Providência que fosse fornecido  um exemplo: Allan Kardec. Nele temos, portanto, o modelo a ser seguido, muito mais que um manual de procedimentos que se interprete conforme interesses particulares. Podemos analisar alguns trechos para conhecer um pouco a maneira como ele exerceu essa crítica, a fim de que possamos inferir um modelo de "protocolo kardequiano" para construção de uma crítica aos antiespíritas que esteja de acordo com os princípios do Espiritismo.

Um exemplo.

Na 'Revista Espírita' de Abril de 1866 há um artigo de A. Kardec sobre um tema recorrente que já era comum à época: 'O Espiritismo sem Espíritos'. Esse texto em particular fornece vários trechos sobre como Kardec exercia sua crítica a tendências e opiniões internas ao movimento. Os mesmos princípios devem valer para as críticas que se pode fazer ao que é externo ao Espiritismo. Logo no primeiro parágrafo está escrito:
Ultimamente vimos uma seita tentar se formar, arvorando como bandeira a negação da prece. Acolhida inicialmente por um sentimento geral de reprovação, não vingou. Os homens e os Espíritos se uniram para repelir uma doutrina que era, ao mesmo tempo, uma ingratidão e uma revolta contra a Providência. (ref 2)
Observe que não há nomes ou referências pessoais nesse parágrafo, a ponto de hoje não termos ideia sobre os atores que representavam essa corrente de pensamento na época. Kardec designa a tendência sobre o nome geral de 'seita' e declara seu princípio: a negação da prece. Ele então discorre de forma resumida sobre as consequências conhecidas dessa postura, a partir de argumentação que usa os próprios princípios que esposa (um movimento que se diz espírita e que negue a eficácia ou necessidade da prece vai contra a existência da Providência Divina). Kardec cria então a oportunidade para criticar outra instância diferente de movimento:
Eis agora uma outra que se ensaia num novo terreno. Tem por divisa: Nada de comunicações dos Espíritos. É muito singular que esta opinião seja preconizada por alguns daqueles que outrora exaltavam a importância e a sublimidade dos ensinamentos espíritas e que se gloriavam do que eles próprios recebiam como médiuns. Terá ela mais chance de sucesso que a precedente? É isto que vamos examinar em poucas palavras. (ref. 2)
O grifo é de A. Kardec. Ele então se propõe uma simples questão que é analisada no que segue através de um conjunto de princípios e o autor não perde tempo exacerbando os pontos negativos do que pretende criticar. Esse preocupação em invocar os princípios e medir as consequências da adoção de uma determinada postura em detrimento de outra (é como se fizéssemos uma 'simulação' de caso, vamos assumir que isso seja válido e examinar as consequências) caracteriza uma crítica positiva. Com ela aprende-se muita coisa e não apenas porque isso ou aquilo é um equívoco.  

Algumas recomendações para um debate fraterno e sadio

Preliminares (lembre-se e verifique antes):
  • Procure conhecer se o adversário tem mesmo interesse em um debate fraterno sobre determinado tema. Um debate fraterno é aquele cujo principal objetivo é o ganho de conhecimento por ambas as partes envolvidas na discussão;
  • Na maior parte das vezes, esse debate dificilmente será exercido sem nenhum tipo de 'ganho moral' . Por isso, evite discussões desnecessárias com pessoas que claramente buscam atenção para seus próprios pontos de vista. Frequentemente, essas pessoas querem atenção e reconhecimento e fazem isso criticando os outros na esperança que esses lhes dirijam a atenção, mesmo que contrária aos seus próprios pontos de vista;
  • Evite discutir com pessoas que usam exclusivamente a autoridade alheia para defender seus pontos de vista sobre determinado tema. Em geral, invocam nomes meritórios ou escoram-se em trabalhos de outros. Fazem isso muitas vezes de forma distorcida. Quem critica tem a obrigação de conhecer em profundidade aquilo que critica e não está autorizado a usar a invocar a autoridade alheia para se dispensar desse conhecimento;
  • Evite discussões que se tornam fatalmente estéreis com aqueles que claramente demonstrem desprezo ou total aversão aos princípios que você defende. Podemos chamar isso de condição para estabelecimento de um 'diálogo entre surdos', porque os debatedores falam muito e escutam pouco ou quase nada;
  • Por mais diferente que seja o ponto de vista expressado por um adversário, tanto ele como você estão sujeitos as mesmas leis Universais que, de há muito, estabelecem e regem o relacionamento e o futuro, e que nenhum ponto de vista ou opinião poderá modificar isso;
  • É possível que um opositor ferrenho ao seu ponto de vista seja um excelente amigo. Às vezes aqueles que mais comungam conosco o ponto de vista são os que menos temos afinidades. Posicionamentos  intelectuais nada tem a ver com relacionamentos pessoais;
Algumas recomendações mais específicas:
  1. Jamais cite textualmente nomes de pessoas envolvidas em críticas. A citação de nomes tem dois inconvenientes: i) faz com que a crítica se ligue fortemente à pessoa (isso é, potencialmente é criada uma situação em que se possa criticar a pessoa e não o que essa pessoa acredita, o que é bem diferente); ii) a citação ou uso de nomes em textos na internet jamais poderá ser totalmente desfeita;
  2. Se a citação do nome for absolutamente necessária, faça isso de forma fraterna e respeitosa. Procure ressaltar o lado positivo do adversário (ele sempre existe). Deixe muito claro que sua critica se dirige ao ponto de vista expressado e não à pessoa. 
  3. O mesmo vale para citação de nomes de instituições e seus representantes. O respeito a nomes pessoais e instituições é mais alta manifestação de caridade que se pode ter em um debate e os que se dizem e pretendam ser espíritas nunca devem se esquecer disso;
  4. Evite perder tempo e palavras esmiuçando os pontos negativos da crítica opositora. Seja assim breve na descrição do ponto de vista contrário, usando mais síntese nesse exercício de exposição do contrário e a análise profunda daquilo que você pensa, sem degenerar em proselitismo;
  5. Lembre-se sempre que 'se você estivar errado, o problema é seu, se outro estiver errado, o problema é dele', logo, é logicamente inútil o exacerbamento de ânimos e a degeneração do debate na forma de ofensas e ataques pessoais; 
  6. Lembre-se que mecanismos de busca (Google etc) classificam páginas da web conforme o número de citações (referências ou links). Assim, se você cita demais um adversário ou crítico, você está, de certa forma, contribuindo para divulgação das ideias dele, pois o mecanismo de busca não tem como diferenciar entre os links positivos dos negativos (isso vale também para citações no ambiente acadêmico, um artigo científico pode ser muito citado porque é muito criticado...);
  7. Procure fundamentar sua crítica segundo os princípios em que acredita. De novo, ataque apenas ideias e nunca quaisquer tipo de referências pessoais. A crítica aos princípios defendidos do opositor (que pode ser descrito com suas próprias palavras) é fundamento da boa crítica. Uma boa crítica não apenas convence os que a acompanham, mas também sobrevive ao teste do tempo.
  8. Assim, ao exercer a crítica, escreva também para o futuro, ou seja, para aqueles que ainda virão e que, certamente, aproveitarão dos seus escritos no futuro sem perder tempo no detalhamento de fatos relacionados à pessoa ou autor criticado. No longo prazo, todos teremos partido e apenas suas ideias terão alguma chance de permanecerem na Terra.

Conclusão

É preciso entender que ainda por muito tempo teremos que conviver com a necessidade de crítica. O exercício da crítica nasceu, do ponto de vista evolucionista, do instinto de preservação de território necessário na luta pela sobrevivência. Essa necessidade evoluiu para abarcar tudo o que o indivíduo pode tomar posse em sua existência: desde família e bens materiais até o seu próprio ponto de vista.

O Espiritismo é uma doutrina criticável porque afirma alguma coisa sobre o mundo. É impossível desempenhar esse papel e estar imune a pontos de vista contrários. Por isso, o espírita tem a obrigação moral de atuar de forma respeitosa em todo debate sobre princípios que afirme acreditar e onde ele é chamado a dar sua opinião. O fundamentalismo que grassa em muitas religiões ortodoxas é consequência de falha grave em compreender os princípios de liberdade e por certo sentimento de fragilidade e ameaça que seus crentes têm em relação aquilo que acreditam. Quem realmente tem convicção de seus princípios jamais poderá se irritar ou se sentir ofendido pelos que lhes são contrários.

Temos em Allan Kardec um modelo a ser imitado (e não idolatrado) na geração da crítica aos adversários do Espiritismo. Não há diferenças grandes no exercício sadio dessa crítica entre adversários externos ou internos. As diferenças encontram-se em sutilezas de pensamento, falta de compreensão abrangente de princípios etc. Porém, o mesmo protocolo deve ser aplicado. O respeito à figura humana (uma derivação do princípio de caridade que é fundamento da crença espírita) deve ser sempre observados nos menores atos, pois a obrigação de maior compreensão e entendimento cabe ao verdadeiro espírita.

Referências e observações
  1. A parte 'filosófica' do Espiritismo é principalmente representada pela sua ética contida em 'O Evangelho Segundo o Espiritismo'.  
  2. Ver 'Revista Espírita' (abril de 1866). Referência IPEAK;