O movimento espírita tem demonstrado enorme interesse no desenvolvimento da Ciência e, em particular, nos avanços da Física moderna. Idéias como ligação não-local, estar em dois ou mais lugares ao mesmo tempo, ou não estar em nenhum lugar antes de uma medida, influência do observador etc têm despertado a imaginação de leitores leigos em Física (e mesmo em alguns não tão leigos assim) com relação às questões espirituais. E, em função do status de verdade que a Ciência goza, capaz de revelar e orientar o progresso intelectual da humanidade, desenvolveu-se um fenômeno curioso dentro das diversas religiões que é o de buscar apoio nas Ciências modernas para doutrinas e teorias de natureza espiritualista. Como não podia deixar de ser, o movimento espírita também tem aderido a essa tendência e há décadas vemos obras que pretendem unir conceitos da Ciência com o Espiritismo, na intenção (boa, diga-se de passagem) de promover ou valorizar o aspecto científico do mesmo.
Porém, boa intenção não é o suficiente para mostrar que um conhecimento novo corresponde de fato à realidade e mesmo na boa fé, pode-se prejudicar mais do que ajudar. Se o interesse é valorizar o aspecto científico do Espiritismo, importante se torna questionar se de fato idéias, teorias, doutrinas, práticas que se dizem baseadas na Ciência e que se propõem no meio espírita são de fato tão dignas de mérito científico quanto qualquer ideia, teoria ou prática novas que surgem dentro do contexto puramente acadêmico ou científico.
O propósito desta série de posts é, portanto, trabalhar um aspecto
pouco presente no movimento espírita: auto-crítica de suas teorias científicas.
E, se o assunto é falar de ciência, lembramos que uma das formas da Ciência se
desenvolver é através de auto-críticas construtivas dos trabalhos anteriores,
onde se procura aprimorar e corrigir teorias e experimentos anteriores para
obter resultados mais precisos ou mesmo prever e descobrir novos fenômenos.
Em um post recente, foram apresentados alguns argumentos sobre a forma equilibrada e cristã que o espírita
tem como dever na hora de realizar uma análise crítica do que dizem os
adversários do Espiritismo. Adotamos isso na análise que se segue de uma das
teorias científicas mais comentadas no meio espírita, muito mais por méritos
pessoais do seu autor, do que pela própria teoria. Estamos falando das teorias A Teoria Corpuscular do Espírito [1] e Psi Quântico [2] de Hernani Guimarães
Andrade (1913-2003). Conhecido confrade espírita pela sua dedicação à pesquisa e
divulgação no Brasil e no mundo dos fenômenos psíquicos e, mais ainda, pela sua
personalidade fraterna e amável, Hernani escreveu duas obras de natureza
teórica a respeito da estrutura da matéria que comporia o Espírito e/ou a
matéria psi. Assim como se faz em qualquer ciência madura, vamos analisá-las
sob a luz da ciência e da razão. Em uma série de três posts, apresentaremos um resumo dos pontos críticos presentes nas
teorias acima. Um trabalho mais detalhado sobre o assunto está sendo preparado
para futura apresentação no próximo encontro da LIHPE.
Nosso objetivo principal é apresentar uma análise aprofundada das teorias de Hernani de acordo com conceitos bem estabelecidos da Física. As seguintes questões nortearão a análise: i) teriam as teorias de Hernani, por utilizarem conceitos da Física, sanção da mesma? ii) Apresentariam elas o que chamamos de auto-consistência, isto é, ausência de contradições entre si ou com outros conceitos da Física? Analisaremos alguns conceitos das obras das Refs. [1] e [2] da mesma forma como novas teorias e conceitos são analisados dentro da área da Física.
Pontos falhos das bases da A Teoria Corpuscular do Espírito
1. Sobre a necessidade de uma teoria com base na Física
Uma justifica para o desenvolvimento de uma teoria corpuscular do espírito foi dada por Hernani na pág. 44 da edição de 2007 da obra [1](1), cap. I, seção “O Espiritismo e as Ciências”:
“No entanto o Espiritismo ressente-se da falta de teorias que lhe facultem avanço seguro na estrada da pesquisa metódica de laboratório.”
Esse comentário é curioso, pois que o Espiritismo é uma doutrina
ou teoria fenomenológica,
isto é, ligada aos fatos e fenômenos e, portanto, ela naturalmente contém em si
orientações para pesquisas de natureza experimental, metódica e em laboratório.
Veja-se para isso a análise do artigo da Ref. [3] e o post “Sobre teorias fenomenológicas e construtivas” .
2. A natureza
corpuscular do espírito
Sob esse título, numa das seções do cap. II intitulado “As Bases da Teoria”, Hernani afirma na pág. 61 que
Sob esse título, numa das seções do cap. II intitulado “As Bases da Teoria”, Hernani afirma na pág. 61 que
“Os mesmos argumentos lógicos que levaram a admitir-se a descontinuidade da matéria como necessária e imprescindível são aplicáveis à noção que hoje temos do espírito.”
Essa afirmação decorre de uma análise feita por Hernani em páginas
anteriores do chamado paradoxo de Zenon de Eléia,
como razão suficiente para concluir que a matéria deve ser descontínua. Há dois
erros nessa consideração. Primeiro que o paradoxo de Zenon é facilmente
resolvido se considerarmos que o produto de uma grandeza que tende a zero por
outra que tende ao infinito, pode ter resultado finito. Ou que a soma de um
número infinito de termos que individualmente tendem a zero, pode ter resultado
finito. Isso, por exemplo, permite definir o conceito de uma integral em
Cálculo como o limite da soma de infinitos termos que tendem a zero. Isso
resolve o paradoxo de Zenon de Eléia. Outro erro é basear a hipótese de
descontinuidade da matéria nesse paradoxo. A Física clássica trabalhou (e ainda
trabalha) com o conceito de continuidade da matéria muito bem. Muitos fenômenos
materiais na escala macroscópica são muito bem descritos por teorias que consideram
um material como sendo formado por elementos de volume maciços e justapostos. A
idéia de que a matéria era formada por partículas discretas só surgiu depois de experimentos como
os realizados por Rutherford e sua equipe onde feixes de partículas alfa (que são núcleos de átomos de
hélio) foram arremessados contra uma folha fina de ouro. Os resultados
mostraram que a matéria não podia ser formada de átomos de acordo com um modelo
conhecido como pudim de ameixas [4] em
que os elétrons se distribuiam uniformemente em uma esfera positiva de cargas do
tamanho do átomo. Para explicar seus experimentos, Rutherford propôs um modelo do
tipo planetário para o átomo, isto é,
em que os elétrons giravam em torno de um núcleo bem pequeno assim como os
planetas giram em torno do sol.
Na
seção “Componentes do Átomo Espiritual” do cap. II de [1], Hernani apresenta a
definição de três novas partículas (pág. 67): “quantum de vida; quantum de percepção-memória; e quantum de
inteligência.”. Na página anterior, Hernani argumenta que essas três
características, vida, percepção-memória e inteligência são parte integrante e
presente nos seres vivos. Na página seguinte, ele propõe a existência das partículas,
bíon, percepton e intelecton
para representarem esses quanta, respectivamente.
A primeira observação que fazemos é
notar que a teoria acima não seguiu o esquema de desenvolvimento das teorias
atômicas da Física. As falhas dessa proposta são as seguintes:
1) Em Física, até hoje jamais se postulou a existência de partículas relacionadas
com o comportamento de sistemas complexos. Seres vivos, para a Física atual,
são sistemas abertos e longe do equilíbrio termodinâmico apresentando, assim,
comportamento rico e complexo. Apesar de bem intencionada, a proposta de que as
características de vida, de percepção-memória e inteligência decorram de
partículas individuais não soluciona de
fato o problema de se descobrir qual é a origem da vida. Filosoficamente
alguém pode perguntar mas por quê essas
partículas se comportam assim? A única forma de aceitar essa proposição
seria demonstrar experimentalmente a existência de tais partículas, e com as tais
propriedades especiais, da mesma forma como, por exemplo, a Ciência material,
hoje, busca medir a existência do Bóson Higgs. Por mais sensata seja a proposta
do Bóson de Higgs para explicar a massa de todas as partículas de acordo com o
chamado Modelo Padrão da Física de Partículas, sem a medida direta da sua
existência, a teoria não é considerada 100% correta. A existência da massa das
diversas partículas não serve de comprovação para a existência do bóson de
Higgs. Essa falha, infelizmente, é cometida na Teoria Corpuscular do Espírito.
A forma de demonstrar a existência de bíons, intelectons e perceptons foi
proposta ser através da análise do comportamento complexo dos seres vivos. Na
verdade, Hernani não percebeu que não se pode usar um fenômeno complexo para
provar um postulado baseado no próprio fenômeno complexo.
A Ciência ainda não sabe descrever
de modo completo o comportamento biológico e menos ainda psicológico dos seres.
Mas isso não sugere que a solução está na definição simples da existência de
partículas que tenham as funções que não sabemos descrever ainda! Em Ciência,
partimos de poucas hipóteses fundamentais e com elas tentamos descobrir o
comportamento de uma gama enorme de sistemas e materiais. O sucesso de novas
teorias depende disso.
Tubo de raios catódicos. |
2) Que na Física a descoberta das partículas subatômicas decorreram de
experimentos como, por exemplo, o de J. J. Thomson com tubos de raios
catódicos, que permitiram descobrir os elétrons. Que experimentos poderiam
demonstrar a existência de bíons, perceptons e intelectons individualmente? Que experimentos poderiam demonstrar
que perceptons estão associados à
percepção-memória e intelectons estão
associados a inteligência nos seres vivos? Foram experimentos como o de Thomson
que mostraram que a matéria é formada por partículas subatômicas, e não os
fenômenos complexos em escala macroscópica! Além disso, ao elétron e ao próton
não foram associados nada mais que propriedades de possuírem determinado valor
de carga elétrica e massa que, por sua vez, foram medidas por experimentos. Já
as propriedades complexas como energia de coesão, condutividades elétricas e
térmicas, elasticidade e outras, são obtidas sem a necessidade de definir um quantum de cada uma dessas propriedades.
3) Outra falha dos fundamentos da teoria de Hernani consiste em não definir o significado dos quanta apresentados por ele. Por exemplo, ele diz na pág. 67 que
“Esta expressão – quantum – é aqui tomada como constituindo a menor fração possível, tendo, porém, um valor constante, fixo e determinado para cada componente-tipo.”
Perguntamos o que entender por “menor fração possível”? Fração possível do quê? Valor constante e fixo de que quantidade? Em termos de quê? Em Física Quântica, um quantum é uma quantidade fixa numérica e bem definida [4]. Quando Planck propôs a quantização das trocas de energia entre radiação e matéria, ele analisou o espectro de radiação do corpo negro em termos de quantidades de energia proporcionais a kBT [4], onde kB é a constante de Boltzmann e T a temperatura do corpo. Quando Einstein propôs que a radiação era composta de partículas de luz, ou fótons, ele propôs uma forma quantitativa de mensurar a quantidade de energia de um fóton [4]. Mas na teoria de Hernani, quanto vale um quantum de percepção ou inteligência? Cremos poder responder essa última pergunta afirmando que não sendo material o objeto de estudo da teoria, que é o espírito, não se pode tratá-la de maneira material ou análoga à matéria. Como podemos ler nos seguintes comentários de Kardec após a questão 28 de O Livro dos Espíritos [5]:
Um fato patente domina todas as hipóteses: vemos matéria destituída de inteligência e vemos um princípio inteligente que independe da matéria. (...) Elas se nos mostram como sendo distintas; daí o considerarmo-las formando os dois princípios constitutivos do Universo. (...).(Grifos em negrito, meus).
Esse é um importante detalhe que precisa ser levado em conta em qualquer teoria para a interação espírito-matéria. Concluímos dessa parte da análise que os fundamentos da teoria de Hernani não possuem respaldo experimental direto.
No próximo post, continuaremos a análise dos fundamentos da Teoria Corpúscular do Espírito. No terceiro post realizaremos alguns comentários sobre a teoria do Psi Quântico [2].
Referências
[1] H. G. Andrade, A Teoria Corpuscular do Espírito,
re-impresso pela Editora DIDIER, Votuporanga,
(2007).
[2] H. G. Andrade, Psi Quântico - Uma extensão dos conceitos quânticos e atômicos à ideia do Espirito, 3ª edição, Editora
Pensamento LTDA, São Paulo (1991).
[3] S. S. Chibeni, “O Espiritismo em
seu tríplice aspecto: científico, filosófico e religioso”, Reformador Agosto, p. 37
(2003); Setembro, p. 38 (2003); Outubro, p. 39 (2003).
[4] R. Eisberg e R. Resnick, Física Quântica – Átomos, Moléculas,
Sólidos, Núcleos e Partículas, Editora Campus, 21a. Reimpressão (1979).
[5] A. Kardec, O Livro dos Espíritos, FEB, 1ª. edição, Rio de Janeiro (2006).
Notas
(1) As páginas citadas aqui se referem às edições usadas como referência. O leitor deve buscar procurar as páginas corretas nas edições anteriores ou posteriores
Links
- Sobre o Alexandre Fontes, ver: Entrevista III - Alexandre F. da Fonseca e a temática espírita na atualidade bem como a primeira parte dessa entrevista.
- 2o. Post: Análise de 'A Teoria Corpuscular do Espírito e Psi Quântico' (Alexandre F. da Fonseca)