29 de janeiro de 2011

Fundamentos III - Como se deve entender a relação entre o Espiritismo e a Ciência.

A tarefa agora é começar a entender como se estabelece a relação entre o Espiritismo e as ciências. Certamente, não será objetivo do Espiritismo competir com esses ramos de atividade humana. Por isso, não é tarefa do Espiritismo fornecer explicações alternativas ou desenvolver o núcleo principal das ciências com as quais o Espiritismo faz fronteira. Não se deve esquecer que o Espiritismo como movimento é uma realização humana. O cientista que é espírita – se trabalha profissionalmente com alguma dessas áreas correlatas – tem seus próprios meios e procedimentos, advindos do estudo adquirido de sua atividade. Como faz parte do processo de desenvolvimento da ciência normal, ele pode (e deve) utilizar os meios a sua volta (inclusive sua própria cultura) para fazer desenvolver sua ciência conforme suas regras próprias. Como dissemos, a ciência não faz caso da origem do conhecimento, o importante é que esse se organize como um paradigma bem estruturado, coerente e naturalmente integrado aos fenômenos. Trazemos abaixo alguns breves comentários das regiões de fronteira entre a Doutrina Espírita e as ciências, enfatizando alguns pontos que nos parecem interessantes:

Espiritismo X Astronomia: é bem conhecida as descrições da origem do sistema solar (nebulosa primordial) existente no livro “Gênese” [2] de Allan Kardec. O capítulo VI de “Gênese” também fala de inúmeras galáxias (denominadas “nebulosas” – entendidas como agrupamentos de bilhões de estrelas como a “Via-Láctea”) numa época em que não se havia certeza desse fato. Há relatos de comunicações de Espíritos anunciando a existência de satélites desconhecidos em outros planetas. Além disso, o Espiritismo parece ter se antecipado às discussões que deram origem à exobiologia, que foi proposta para estudar a possibilidade de vida em outros planetas. É interessante observar que, uma vez classificada como um planeta qualquer, a Terra passou a ser vista como um dos muitos planetas a ter vida inteligente no Universo (algo muito difícil de se acreditar no século 19). O Espiritismo prevê abertamente, pelo princípio da “pluralidade dos mundos habitados”, a existência de vida inteligente fora da Terra (ainda a ser verificada pelos métodos normais – contato físico). Antes disso, porém, previu a existência de inúmeros planetas orbitando as estrelas, um fato que se tornou tema de pesquisa contemporâneo, graças ao desenvolvimento de novos métodos de observação muito mais precisos. Muitos planetas foram encontrados a partir de 1990 em torno de estrelas próximas.

Espiritismo X Física: aqui deparamo-nos com algumas afirmações feitas em “O Livro dos Espíritos” que parecem ter antevisto a modificação radical por que passaria a física a partir do século 20. Os Espíritos falaram em uma forma que “que não sois capazes de apreciar” [4] a respeito da estrutura dos átomos (uma alusão às “nuvens de probabilidade” dos elétrons?) num contexto bastante diferente para a física da época. Considerações sobre a origem do Universo são feitas no começo de “O Livro dos Espíritos”, levando o Espiritismo para a fronteira com a cosmologia. É preciso, porém, ter cautela em se tratar a questão inversa: a da influência da física no Espiritismo. Muitos falam abertamente nas diversas “energias” que constituem o mundo espiritual, esquecendo-se que “energia” é um conceito muito bem definido em física e que não admite reinterpretações dessa forma [5]. Outros levantam a possibilidade de entender o próprio mundo espiritual como um “contínuo quadridimensional” do mundo físico. Para se utilizar conceitos e sugestões advindos do Espiritismo na física, faz-se necessário grande competência em física uma vez que os núcleos das teorias (tanto do lado espírita como material) possui certa resistência a mudanças, além de estar fundamentado em teorias profundamente matemáticas. Por isso mesmo, tentativas de modificação de conceitos por sugestão de ambos os lados (de um lado para outro) são muito duvidosas no que diz respeito a qualquer avanço significativo no conhecimento. É importante também considerar as questões de diferença de linguagem (significado de termos e conceitos dentro de cada teoria particular) quando essa linguagem tenta conectar um fenômeno supostamente descritível tanto pela física como pelo Espiritismo. Minha impressão particular é que o grau de especificidade atingido pela física (especialização na forma de pulverização de campos de compentência) torna pouco viável qualquer tentativa “fácil” de interação.

Espiritismo X Biologia (medicina): aqui a fronteira torna-se um pouco mais nítida. Em “O Livro dos Espíritos” [6], existem muitas questões a respeito da origem dos seres vivos. É também na “Gênese” que existe um famoso capítulo sobre a gênese orgânica. Naturalmente, esse capítulo faz eco às concepções da época, ainda às voltas com a “teoria da geração espontânea”, então a teoria mais aceita. É no Capítulo XI da II Parte de “O livro dos Espíritos” [3] que vamos encontrar questões cujas perguntas reafirmam a natureza espiritual de todos os seres vivos e sua submissão à lei de progresso. Naturalmente, os mecanismos da evolução das espécies não estão afirmados nesses livros, mas o princípio de evolução espiritual ajusta-se perfeitamente bem aos princípios da seleção natural, representando um mecanismo de modificação que atua na parte material levando o Espírito a se desenvolver. É importante considerar que as discussões sobre a gênese orgânica são complementares para a compreensão da Doutrina e seu desenvolvimento. Por isso esses pontos, assim como muitos outros, sofrem e sofrerão modificação, sem que haja impacto ao corpo principal de doutrina.

Tal não é o caso, porém, com as inúmeras patologias da alma [7] que citamos acima. Nos quadros obsessivos, a ação do Espírito obsessor pode levar ao colapso orgânico do obsidiado. A origem da doença, em sua íntima essência, encontra-se assim descrita através desse quadro de “simbiose espiritual”. É difícil entender como outra teoria – que desconheça a ação dos Espíritos – possa ter um sucesso maior no desenvolvimento de uma terapia apropriada. Aqui se vê claramente a enorme importância dos princípios espíritas no desenvolvimento de certos ramos da medicina pois não se trata apenas de construção ou progressão da ciênica mas do desenvolviemento de terapias apropriadas a inúmeros transtornos mentais.

Espiritismo X História: as contribuições que o Espiritismo pode dar à História são bastante evidentes. Um aspecto bastante inovador surge aqui, que é o de considerar os relatos históricos fornecidos pelos Espíritos, quando por meio de médiums conhecidos. São notórios os casos de médiums que colaboram com investigações policiais na elucidação de crimes. No Brasil a psicografia já ajudou a elucidar vários assassinatos. Com médiums equilibrados, os Espíritos podem fazer revelações úteis ao progresso moral da sociedade e, muitas vezes, essas revelações trazem noticias de relevante valor histórioco (como no caso dos inúmeros romances históricos de Emmanuel por meio de Francisco C. Xavier).

Espiritismo X Psicologia: o Espiritismo tem muito a contribuir com as disciplinas que tem como objetivo de estudo o homem em sua essência. Esse é o caso da Psicologia. Podemos falar em uma psicologia espírita que nasce por “inspiração” dos postulados da doutrina (principalmente de suas conseqüências morais) na maneira de viver, de se comportar e de interagir dos seres humanos. O conhecimento da lei de evolução e reencarnação é crucial para se entender as tendências inatas dos seres humanos que determinam o comportamento, além das limitadas considerações genéticas. Esse certamente é um campo com grande futuro, onde apenas vislumbramos um começo.

Espiritismo X Sociologia: o comportamento social e evolução das sociedades é função de seu desenvolvimento cultural, de seu passado e da maneira de ser de seus indivíduos. Como no caso da História e da Psicologia, o Espiritismo tem muito a contribuir para o estudo e desenvolvimento da história social do homem uma vez que o compreende como Espírito em perene evolução. Há uma interação natural, desde a mais remota antigüidade entre o mundo material e o plano espiritual. Esse fluxo é responsável pelo aparecimento e desenvolvimento de muitas religiões e culturas consideradas “inspiradas”. Dos princípios e informações fornecidos pelos Espíritos, é possível complementar a história de várias sociedades. 

Todos esses campos (assim como outros não listados acima tais como as artes) aguardam um futuro quando o espírita cientista seja capaz de utilizar judiciosamente o seu conhecimento de acordo com as regras estabelecidas por sua ciência particular. O objetivo não é fazer o Espiritismo brilhar para a sociedade como um concorrente das ciências, mas como fonte de inspiração e origem para proposição de novos mecanismos de explicação dos fenômenos e ocorrências características de cada uma delas.

Considerações diferentes dizem respeito à atuação do cientista espírita. Por esse termo referimo-nos àqueles que pretendem desenvolver a ciência espírita a partir de seus princípios ou com a modificação desses, utilizando ideias advindas de outras ciências. É uma conseqüência natural que se pretenda estabelecer um ambiente acadêmico espírita – uma vez verificado o caráter científico do Espiritismo. Mas cautela é necessária para não exagerar demais nas extrapolações. Se o Espiritismo é, de fato, uma ciência, não segue daí que, no nosso momento histórico, ele deva se preocupar com o estabelecimento de um ambiente acadêmico como uma cópia dos ambientes acadêmicos de outras ciências. Todos conhecem os efeitos que a excessiva profissionalização pode trazer em detrimento do fluxo de idéias, gerando estagnação. Imaginamos que no presente momento de desenvolvimento e expansão da Doutrina Espírita não temos um ambiente completamente apropriado à efetiva realização dos objetivos de um ambiente puramente acadêmico. Outras considerações sobre essa questão serão feitas em texto futuro.

3.Alguns comentários finais.

Tentamos limitadamente neste texto discutir algumas idéias sobre o conceito moderno (paradigma) de ciência “normal” – ou ciência amadurecida – e o que seria compreensível como uma salutar relação dessa ciência com o Espiritismo. A aplicação padrão dos procedimentos de construção da ciência leva a plena formação e progresso do conhecimento científico. A tentativa forçada de se estabelecer relações – não sugeridas pelo desenvolvimento científico, mas imaginadas como situações idealizadas – não só conduz a perda de tempo como ao descrédito. Da parte do Espiritismo, tentativas forçadas de querer transcrevê-lo ou moldá-lo segundo normas ou procedimentos de outras ciências pode conduzir à ilusão de falsificação da doutrina, uma vez que o conhecimento científico e sua interpretação é função de um contexto altamente específico e mutante, mas desconexo em relação a ela. Por outro lado, querer misturar conceitos de outras ciências com princípios espíritas não é científico, pois dentro da noção de paradigma cada um deles deve ser entendido dentro de seu contexto de pesquisa (ambientação acadêmica), não se permitindo enxertias ou fusões ainda que muito bem intencionadas.

Aprendamos a ver cada ciência – o Espiritismo entre elas – como linguagens a respeito do mundo. No procedimento de comunicação normal, plena compreensão só é conseguida quando o emissor e o receptor dispõem de bagagem linguística comum. Todo e qualquer procedimento de tradução leva necessariamente a perda de significado pela impossibilidade de se transcrever plenamente determinados conceitos e idéias típicos de um determinado referencial linguístico. O Espiritismo é uma linguagem a respeito do mundo espiritual, criada e desenvolvida para transmitir conceitos sobre esse mundo. As ciências materiais são linguagens distintas que tratam de outro cenário, embora o “palco” apresente áreas comuns ou adjacentes que, no momento, não dispomos de linguagem apropriada para utilizar.

Entretanto, a própria evolução das ciências levará à criação de uma linguagem comum em futuro incerto (talvez ainda distante). Esperamos que, quando esse futuro acontecer, o Espiritismo tenha cumprido em sua totalidade seu papel fundamental, que é o de promover a efetiva reforma moral em todos os Espíritos que dele tiverem se aproximado, buscando consolo e refazimento moral.

Artigo originalmente publicado no boletim do GEAE, número 472 (2004).

Agradecimento

Agradeço ao Alexandre F. da Fonseca pela leitura e comentários a este texto. 

Referências 

[2] A. Kardec, “A Gênese”, Uranografia Geral, o espaço e o tempo (Cap. VI). Ed. Federação Espírita Brasileira, 34a edição (1991).
[3] A. Kardec, “O Livro dos Espíritos”, Trad. Guillon Ribeiro, Ed. Federação Espírita Brasileira, 71a edição (1991).
[4] Referência [3] , questão 34.
[5] A. P. Chagas, Polissemias no Espiritismo, Revista Internacional de Espiritismo, pp. 247-49, Setembro de 1996.
[6] Referência [3], Cap. III.
[7] I. Ferreira, “Novos rumos à medicina”, Vol. I, Tratamento dos processos obsessivos no Sanatório Espírita de Uberaba, Edições Federação Espírita do Estado de São Paulo (1990). 

22 de janeiro de 2011

Fundamentos II - Como se deve entender a relação entre o Espiritismo e a Ciência.

Como dissemos, o sucesso da ciência contemporânea bem estabelecida advém de sua estrutura em paradigmas, onde os fenômenos não têm papel central.  Muitas vezes pode acontecer que uma determinada teoria seja melhor que outra, ao mesmo tempo que ninguém acredite nela. Teorias como realizações mentais ou afirmações sobre o mundo são criadas livremente por um grupo restrito de cientistas (às vezes apenas um indivíduo), e portanto, fazem parte de sua bagagem cultural como crenças. É pela adequação dessas teorias aos fenômenos que elas se tornam aceitas por um grupo maior. O problema é que a definição de experimentos ou a previsão de determinadas ocorrências fenomenológicas depende da teoria. Poderíamos dar inúmeros exemplos dessa situação. Em física – que é uma das ciências costumeiramente consideradas com grande prestígio – é bastante nítido a ocorrência de “previsões experimentais” como resultado direto de teorias sofisticadas onde nada remotamente parecido com o fenômeno em questão tenha entrado como ingrediente. Algumas outras vezes, são feitas previsões de objetos ou circunstâncias nunca observados anteriormente. Essa inversão de papéis, no que tange à importância para o desenvolvimento da Ciência entre teoria e experimento, é a principal causa de confusão tanto no que se refere à compreensão correta da Ciência em si como do aspecto científico do Espiritismo. Conseqüentemente deve-se fazer um esforço para compreender essa inversão, que será útil na discussão da relação entre o Espiritismo e a Ciência. 

A Ciência só tem início com a teoria. Essas podem ter qualquer origem – sejam motivadas por algum acontecimento experimental ou por algum sonho de pesquisador (como no famoso caso do sonho de Kekulé ao conceber o formato dos anéis de carbono no benzeno). A origem do conhecimento científico não é importante para a Ciência. Isto quer dizer que uma determinada teoria não tem valor maior ou menor conforme sua origem, embora muitos cientistas sejam levados a crer ou não nelas de acordo com a força de autoridade de seus proponentes. A partir da proposição da teoria, segue a tentativa de explicação dos fenômenos com ou sem a ajuda de leis complementares que não fazem parte do núcleo principal da teoria. Como um exemplo, podemos considerar o processo de previsão de tempo na meteorologia. As leis que governam os fenômenos meteorológicos são leis físicas, assentadas em princípios térmicos e termodinâmicos. Para prever a situação de tempo com todos os detalhes, pode-se construir modelos numéricos sofisticados onde essas leis estejam embutidas juntamente com “condições de fronteira” específicas tais como a separação entre continentes e mares, o estado inicial de temperatura de uma determinada região, a posição do sol (sua altura em relação ao solo) etc. Essas são as leis complementares. 

Dissemos que a maior parte das pessoas considera a noção popular a própria essência do “método científico”. Isso é particularmente forte nas denominadas “ciências parapsicológicas”, ou o conjunto de disciplinas que tem como objetivo explicar, de maneira supostamente científica, os fenômenos mediúnicos do Espiritismo. Essas disciplinas apresentam escassa discussão teórica, dando enorme ênfase à descrição puramente fenomenológica dos fatos psíquicos. Quando são fornecidas explicações, essas procuram se ligar fortemente aos fenômenos. Dessa forma, é comum a tentativa de explicação simplificada para cada fenômeno. Assim a telepatia é invocada como “hipótese” para explicar as comunicações dos Espíritos, negando-se a existência desses últimos. Ora a “telepatia” é definida simplesmente como a capacidade de transferência de informação entre duas “mentes” (no caso, pessoas). Essa capacidade pode ser constatada de forma experimental. É um fato e não um princípio sobre o qual se possa estabelecer uma explicação. Nas “ciências psi” busca-se dar explicações aos fatos utilizando-se os próprios fatos. Nesse processo, explicações têm a aparência de verdade  pela sua designação por nomes empolados, difíceis de se pronunciar e com nenhum apelo intuitivo. É muito conhecida a frase, dada à guisa de explicação, de que os fenômenos psíquicos se fundamentam nas capacidades desconhecidas do cérebro. Diz-se que os seres humanos normais utilizam apenas “10% da capacidade cerebral”. Ora, qual a base para semelhantes afirmações? Como se mede essa capacidade cerebral? Nas “ciências parapsicológicas” ocorrem falhas  de compreensão dos verdadeiros atributos de uma disciplina para ser denominada ciência. 

Já discutimos muito brevemente que uma verdadeira ciência se constrói utilizando modelos, teorias ou paradigmas. A Fig. 2 ilustra essa “concepção de ciência” mais próxima da realidade. Há um centro irradiador de explicações (a teoria) integrado naturalmente aos fenômenos naturais a respeito dos quais a teoria ou paradigma versa. Leis complementares reforçam a estrutura do paradigma e integram os princípios que fazem parte dele aos fenômenos. Juntamente com essas leis, o paradigma fornece explicações para os fenômenos, inclusive alguns desconhecidos. É possível assim que no corpo teórico que constitui o paradigma, já exista o gérmen para explicação de muitos fenômenos nunca observados. Esse modelo encontra respaldo na história do desenvolvimento de muitas ciências bem sucedidas.

Fig. 2

Também o modelo da Fig. 2 não faz nenhuma referência à necessidade externa de “instrumentos especiais de medida” e nem a métodos supostamente rigorosos de medida experimental, pois a existência desses aparelhos só se justifica pelo paradigma que explica seu funcionamento. É o caso, por exemplo, da utilização de equipamentos ópticos para estudar o movimento dos planetas e outros corpos celestes. A explicação do funcionamento dos equipamentos é fornecida pela óptica, uma área da física, não necessariamente ligada à astronomia ou astrofísica. É possível englobar os princípios da óptica e da mecânica dos corpos em um corpo de teoria comum (no caso a “física”), mas prefere-se mantê-los separados por referirem a domínios fenomenológicos diferentes. Ressaltamos porém que o grau de complexidade desses aparelhos não tem correlação alguma com o rigor com que eles realizam suas medidas. Muito ao contrário, nesse modelo, estimula-se a realização de testes experimentais simples, de observação direta, onde haja pouca influência de fatores de erro a comprometer a realização das medidas. No modelo da Fig. 2 a teoria tem papel fundamental e não o fenômeno. Desde de que se creia e desenvolva a teoria, explicações para os fenômenos irão aparecer. Visto de outra forma, os fenômenos são justificados (explicados) pelo modelo a ponto de só poderem ser percebidos por aqueles que disponham de conhecimento do paradigma. Muitas vezes é possível notar que um mesmo paradigma fornece explicações para inúmeros fenômenos – muitos deles tratados inicialmente como sem correlação alguma com a teoria. Há inúmeros exemplos como esses nas chamadas “ciências normais”, as ciências que se desenvolveram historicamente segundo o modelo “paradigmático” de ciência. Percebe-se que a negação dos fenômenos não traz consequência alguma para a ciência vista nesse sentido pois o paradigma tem papel fundamental. Nesse caso, negar um fato soa profundamente suspeito de falha de compreensão da teoria ou paradigma. Não há também nenhuma preocupação com o grau de comprometimento do cientista com sua crença: pelo contrário admite-se abertamente que ciência é uma atividade onde a criatividade e crença particular do cientista tem uma importância muito grande e benéfica para a ciência. Há, porém, limites para a livre criação, o corpo teórico deve ser interrelacionado e coerente, isto é, seus princípios não devem conflitar entre si. Além disso, a excelência de um determinado paradigma é medida em termos de sua capacidade de explicar os fenômenos a ele ligado e também prever outros. Assim, não basta apenas criar muitas explicações, essas originam-se de princípios mais primitivos e harmônicos, mais ou menos imutáveis. Mas, essa imutabilidade não deve ser entendida com a rigidez dos dogmas.

Entendemos que a parte científica do Espiritismo deve ser entendida no modelo da Fig. 2. Nele os fenômenos são parte secundária e não fundamental da doutrina. A Doutrina Espírita contém o núcleo principal teórico da ciência espírita. Pela utilização de leis complementares, chega-se a explicação dos fatos. No caso dos fenômenos mediúnicos, a existência do perispírito como agente intermediário entre o Espírito e o corpo material é fundamental para compreender a imensa maioria dos fenômenos mediúnicos também denominados psíquicos. Entretanto, a Doutrina Espírita, vista como paradigma com conseqüências mais profundas, toca um conjunto muito mais extenso de fenômenos: fenômenos sociais (principalmente comportamentais), biológicos, históricos, mentais etc. Assim, embora não seja seu objetivo principal, o Espiritismo contribui com muitas áreas do conhecimento, em particular com aquelas que buscam compreender a origem, essência e futuro do homem entendido como uma criatura sem limite no tempo. O Espírito é assim o objeto de estudo da ciência espírita e o paradigma espírita é formado por um conjunto harmônico e mais ou menos fixo de fundamentos. Princípios como a existência de Deus, do espírito como elemento fundamental (além da matéria), da evolução do Espírito e da comunicabilidade entre os Espíritos e os homens (reinterpretados como Espíritos encarnados) são alguns dos princípios fundamentais. Esses princípios juntamente com outros (tal como a busca da felicidade por parte das criaturas) explicam e preveem os fenômenos. Consideremos o caso das doenças mentais. Faz parte desse enorme grupo de patologias (que afetam o comportamento do indivíduo) um grupo não menos importantes de doenças provocadas por influências espirituais – as obsessões em seus mais diferentes graus. Compreender o surgimento dessas doenças, que fornece idealmente a base para um tratamento eficaz, é tarefa simples para o Espiritismo (desde que corretamente aplicado), mas muito difícil para as correntes que negam a existência do Espírito, e que buscam uma explicação puramente material. Já citamos aqui a telepatia. Dentro do paradigma espírita, a comunicação entre Espíritos é um fato bem estabelecido. Em particular, a comunicação entre Espíritos encarnados é uma forma particular dessa capacidade de comunicação. Temos assim uma explicação muito natural (dizemos “intuitiva”) da telepatia. Essa explicação funda-se num princípio muito mais geral que justifica, simples e igualmente bem, a enorme variedade de comunicações ou fatos psíquicos.

3. Como se deve entender a relação entre o Espiritismo e a Ciência.

Depois dessa discussão inicial, fica claro que não se pode falar em uma receita infalível, tal como o sonho de um método rigoroso, para se fazer ciência. Ela é o resultado de uma atividade altamente complexa e integrada no tempo através de grupos de indivíduos formando uma cultura. O Espiritismo, diante das considerações feitas, classifica-se plenamente como uma doutrina científica. Não segue daí que deva adotar o modelo popular de ciência por algumas das falhas que discutimos anteriormente. Essa discussão é importante para os que consideram a Doutrina Espírita, desenvolvida nos livros básicos de Allan Kardec, como conhecimento ultrapassado. Não existe nada mais longe da realidade. Como dissemos, o corpo principal da teoria é protegido com certa rigidez. Modificações no paradigma só acontecem – são conclusivamente admitidos como necessários – se houver razões muito fortes para isso. Tal não é o caso do Espiritismo proposto pelos Espíritos que auxiliaram Kardec. Da mesma forma que negar os fenômenos é sinal de falha na compreensão do paradigma, com muito mais razão, as tentativas de “reforma” do núcleo principal do Espiritismo (invenção de novos princípios em desacordo com aqueles) é sinal forte de falha na compreensão desses princípios. Clamores recentes nesse sentido são assentados em considerações bastante pueris, e deixam entrever uma dificuldade de compreensão do verdadeiro caráter do Espiritismo.

Artigo originalmente publicado no boletim do GEAE, número 472 (2004).



19 de janeiro de 2011

Fundamentos I - Como se deve entender a relação entre o Espiritismo e a Ciência.


Resumo


Discute-se aqui brevemente a interação entre a Doutrina Espírita e as ciências. Essa relação pode ser entendida de diversos aspectos, uma necessariamente que considera o aspecto científico do Espiritismo. É importante porém frisar que não pode haver compreensão correta dessa interação, se não se tem compreensão correta do sentido em que se fala do aspecto científico do Espiritismo. Essa discussão apresenta implicações importantes para os espíritas que acreditam na necessidade de atualização da Doutrina Espírita.

Observação: Neste artigo, 'Espiritismo' e 'Doutrina Espírita' são usados como sinônimos, entendendo-se por eles o conjunto de princípios definidos em 'O Livro dos Espíritos' por Allan Kardec.

1.Introdução

Todo adepto com razoável entendimento dos princípios da Doutrina Espírita sabe que ela é um conjunto de princípios que se apresentam como afirmações sobre o mundo. Não é menos certo que muitos desses princípios, ainda que se apliquem ao objetivo maior do Espiritismo que é o estudo do elemento espiritual, contêm afirmações singulares e gerais sobre o mundo material. Isso necessariamente nos leva à fronteira entre o Espiritismo e as ciências bem estabelecidas que também afirmam coisas sobre o mundo. Para que haja evolução na forma de aquisição de conhecimento – um dos objetivos das ciências e também do Espiritismo, no caso, conhecimento sobre o mundo espiritual – faz-se necessário conhecer exatamente como se dá essa relação.

A ciência, tal como a conhecemos hoje, é produto da evolução lenta com que nossa sociedade passou nos últimos séculos. Não existe um consenso geral (na forma de uma formula ou padrão estabelecido) sobre qual seria a definição exata de ciência. Podemos, porém, descrevê-la de acordo com alguns de seus atributos bem conhecidos. De todos eles, um que parece conveniente para caracterizar as chamadas ciências bem estabelecidas (física, biologia, química e outros) é a noção de paradigma [1]. Por paradigma entende-se um conjunto de princípios que versam sobre determinado objeto, e que se encontram naturalmente relacionados a um grupo ou conjunto de fenômenos naturais. Fazem parte do corpo que forma o paradigma também leis que complementam o conhecimento, permitindo a aplicação das leis do corpo principal aos fenômenos observados. Os paradigmas são os campos de trabalho tradicional na pesquisa normal das grandes áreas do conhecimento científico. Assim, Ciência não é a mera coleção de fatos e hipóteses mas algo muito mais complexo, em constante mutação através das gerações possuindo seus próprios sistemas de proteção a fim de evitar que seu corpo principal de doutrina seja corrompido. Não se pode mudar a orientação de determinado programa de pesquisa de uma noite para outra, ainda que se tivesse uma boa razão para isso. As mudanças nos programas de pesquisa que caracterizam o paradigma – conhecidas como revoluções científicas – necessitam de um tempo de maturação e, muitas vezes, uma mudança no posicionamento dos cientistas, na maneira como eles vêem o mundo. As revoluções científicas são acontecimentos de curta duração seguidos muitas vezes de estágios de desenvolvimento mais ou menos estáveis.

Semelhantes considerações, como pode se compreender, não devem ser deixadas de lado na análise do assunto que serve de título a este texto. Da mesma forma, de uma análise imparcial da própria Doutrina Espírita deve nascer um modelo de idéias que consiga descrever corretamente o que se entenda por “aspecto científico” do Espiritismo. De posse desses dois ingredientes (compreensão correta do aspecto científico do Espiritismo e do significado da Ciência) podemos então considerar seriamente um debate sobre a relação entre esses dois ramos do conhecimento humano. Apresentamos aqui brevemente alguns subsídios para se iniciar esse debate.

2. Noções incorretas de ciência espírita e ciência normal. Discutindo um modelo mais apropriado de ciência. 

Um número razoável de espíritas e simpatizantes procuram abordar o aspecto científico do Espiritismo de forma a moldá-lo segundo a visão parcial do conhecimento considerado genuinamente científico. Essa visão parcial vê a ciência como uma atividade extremamente rigorosa em seus métodos de análise e acredita que os sucessos obtidos com o desenvolvimento científico – que permitiram compreender os fenômenos e desenvolver novas aplicações tecnológicas – são produto direto desse rigor metodológico. Nada poderia estar mais longe da realidade. O sucesso da ciência atual, que se materializa na forma de produtos tecnológicos e sofisticados métodos numéricos de reprodução da realidade em seus mínimos detalhes, não decorre apenas de um rigor metodológico qualquer que seja ele, mas principalmente das teorias que nascem em sua forma primitiva na cabeça dos cientistas. Semelhante compreensão parcial da realidade é comum para muitos espíritas que acreditam que os fenômenos espíritas devam satisfazer necessariamente a critérios de adequação empírica conforme os moldes das ciências normais. Para esses, a “ciência espírita” tem a ver unicamente com a parte fenomenológica (na forma da mediunidade em seus múltiplos aspectos) com exclusão de qualquer consideração de princípios. O Espiritismo é visto como um amontoado de fenômenos a partir dos quais se pode inferir um conjunto de afirmações mais gerais e deduzir consequências. Seguindo esse caminho, logicamente os inimigos do Espiritismo se comprazem em negar os fenômenos ou inventar explicações alternativas que parecem atingir os princípios espíritas. Coincidentemente, essa visão também é popularmente atribuída à ciência. De uma maneira simplificada podemos esquematizar o entendimento popular de ciência – que dá origem ao chamado “método científico” – de acordo com a Fig. 1. 


Fig. 1

Nessa figura, um observador bem intencionado (quer dizer, isento de pré-julgamentos ou explicações próprias consideradas tendenciosas) observa os fenômenos da natureza. Essa observação deve ser igualmente isenta e completa suficiente para não permitir perda de informação a respeito dos fenômenos. Deve ser realizada de forma a cobrir o maior número de “condições” possíveis, o que leva à necessidade de se repetir testes experimentais um grande número de vezes. A partir dos fenômenos ele elabora hipóteses consideradas razoáveis que, por um processo mal explicado, degenera (ou se sintetiza) em “leis gerais”. Esse processo de criação de leis gerais é denominado indução. A partir das leis induzidas outros fenômenos semelhantes (ou os mesmos) podem ser explicados por um processo denominado dedução. Um ponto importante a ser considerado diz respeito às conseqüências para o desenvolvimento de uma ciência se o modelo mostrado na Fig. 1 for considerado ideal. Compreensivelmente pode-se com ele destruir qualquer tipo de explicação negando-se simplesmente os fenômenos. Desde que esses não existam, não há sentido em se acreditar nos princípios deles supostamente induzidos. Isso acontece com os que negam inúmeras vezes os fatos psíquicos e, com eles, a ideia de comunicação entre vivos e mortos com a sobrevivência dos seres após a morte. 

Artigo originalmente publicado no boletim do GEAE, número 472 (2004).

Referências

[1] A. F. Chalmers, “O que é ciência afinal ?”, (1993), Ed. Brasiliense.

15 de janeiro de 2011

Novo Jornal de Estudos Antropológicos

ISSN 2044-9216


Entre dois mundos

Várias vezes antropologistas testemunham rituais de Espíritos, e várias vezes exegetas indígenas tentam explicar que os Espíritos estão presentes...Mas, antropologistas resolvem sempre interpretar tudo de forma diferente. Nós, antropologistas, precisamos treinamento para ver o que os Nativos vêem.
Edith Turner (1993). "The reality of Spirits: A Tabooed or Permitted Field of Study?" Anthropology of Consciousness 4(1): 9-12.

No que segue abaixo, o que está em azul são textos de J. Hunter que comento mais abaixo.
 

Por J. Hunter (Universidade de Bristol, UK)

Bem vindos à primeira edição de 'Paranthropoloy: Journal of Anthopological Approaches to the Paranormal". Essa jornal tem como objetivo básico fornecer uma plataforma para a disseminação de novas pesquisas e idéias concernentes à abordagens antropológicas para o estudo de crenças paranormais, associadas à prática ou aos fenômenos. Embora a ênfase do jornal seja uma abordagem antropológica, ele também se ramificará em outras disciplinas - psicologia, parapsicologia, sociologia, folclore, história - como um meio de explorar a maneira como tais metodologias teóricas lançam luz sobre o paranormal.

Antropologia e Paranormal: qual é a questão? 

Há muitas razões para uma abordagem antropológica como estudo do paranormal. Não só a antropologia fornece uma metodologia promissora para a elucidação e compreensão do paranormal, como também o paranormal se apresenta como um aportunidade para que teorias e técnicas antropológicas sejam testadas e expandidas. 


Andrew Lang

A idéia que métodos antropológicos sejam apropriados para o estudo de fenômenos paranormais não é nova. Escrevendo ainda no Século 19, o acadêmico escocês Andrew Lang (1844-1912), apresentou o método antropológico aos membros da Sociedade de Pesquisa Psíquica (SPR). Lang achou incrível que a SPR tenha, por qualquer razão, se recusado a comentar sobre experiências psíquicas na literatura antropológica e, semelhantemente, que a antropologia da época estivesse super interessada no tipo de pesquisa feita pela SPR. Lang (1996) expressou a opinião que ambos os conjuntos de dados (antropológicos e psíquicos) seriam melhor compreendidos se fizessem referência mútua, ao invés de serem tomados como eventos separados e descorrelacionados.

Métodos antropológicos, em particular participação etnográfica, podem resultar em uma compreensão aprimorada dos mecanismos sociais, psicológicos e espirituais que envolvem as manifestações do paranormal, fatores que podem adicionar uma compreensão mais profunda do tipo de fenômenos estudados por parapsicológos. A pesquisa parapsicológica tende a assumir que efeitos paranormais só podem ser replicados no laboratório sem consideração à maneira como tais efeitos tem sido tradicionalmente produzidos. De fato, Frederic Myers, um dos fundadores da SPR, afirmou que um dos objetivos da pesquisa psíquicas seria o estudo de fenômenos psíquicos ostensivos sem uma...
...análise da tradição, ou sem qualquer manipulação metafísica, mas simplesmente experimentação e observação - pela simples aplicação aos fenômenos dentro de nós e ao redor de nós, dos métodos de pesquisa exata, deliberada e desapaixonadamente, que serviram de base para o conhecimento do mundo que podemos ver e tocar."  (citado por Gauld, 1983, xi)
Tal abordagem altamente racional, positivista e empírica tornou-se a pedra fundamental da parapsicologia moderna e deve, possivelmente, explicar as evidências relativamente inexpressivas que essa disciplina tem conseguido se comparada aos fenômenos extravagantes registrados na literatura etnográfica: é simplesmente um abordagem que desconsidera a tradição mágica. De Martino (1972), por exemplo, lista um número grande de fenômenos paranormais ostensivos (clarividência, precognição, experiências fora do corpo, psicocinese, fire-walkings etc) testemunhados por etnógrafos em partes diferentes do mundo, e compara o jeito com que etnógrafos registra tais ocorrências (i. e., dentro de um contexto particular histórico, social, cultura, mitológico e cosmológico) com o jeito como parapsicólogos  fazem o mesmo. Assim ele escreve sobre a parapsicologia:
Ocorre um quase que total redução do estímulo histórico que está em ação nas ocorrências espontâneas de tais fenômenos. Assim, no laboratório, o drama do homem desencarnado (dying man) que reaparece... para um parente ou amigo - é substituido (reduzido) a um experimento de repetição - tenta-se transmitir à mente do sujeito a imagem de uma carta de baralho escolhida aleatoriamente. (1973, p. 46)
A proposta do jornal de Parantropologia é inovadora para a nossa época e parte da necessidade de se avaliar a quantidade enorme de evidências etnográficas e históricas para fenômenos psíquicos. De fato, poderíamos dizer que a verdadeira pesquisa psíquica deve se iniciar com a antropologia e não na proposta de laboratórios de parapsicologia. Por que? Porque a Antropologia procura modelos para o fenômeno humano (tanto moderno como primitivo) sem eliminar nada deles que lhes seja característico. Embora esses fenômenos sejam interpretados dentro de concepções restritas que eliminam o transcendente, a proposta da Paranthropology é justamente iniciar ou propor modelos antropológicos onde a existência do transcendente não possa ser descartada.

O horror à idéia da sobrevivência e as concepções espiritualistas fez surgir a pesquisa parapapsicológica com proposta  supostamente científica e certamente fechada às observações que ocorram fora dos recintos de laboratórios (veja a citação de F. Myers acima). Essa decisão foi tomada sem prestar atenção ao fato de que existem fenômenos naturais que não podem ser reproduzidos em laboratório, ou mesmo que a exigência de repetibilidade em laboratórias torna restritiva as condições de ocorrência, ou seja, resultam em interferências destrutivas no fenômeno.

Há uma crença generalizada de que só existe ciência se os fenômenos puderem ser repetidos em laboratório. A constatação de De Martino, embora interpretada como uma observação quanto à eliminação de estímulos históricos, reflete a eliminação de quase todos os estímulos possíveis necessários para as ocorrências psíquicas. A que se reduz então os testes parapsicológicos 'rigorosos'? A medidas de coincidência de leitura de carta por 'sujets' ou outros sinais gerados por computador, ou por fontes radioativas. Com isso, espera-se medir correlações que lançem luz à existência de precognição ou retrocognição, sem se postular nenhum mecanismo para que isso ocorra, a menos da existência de Super Psi, ou a existência de indivíduos dotados de percepção quase que onisciente (tanto no espaço como no tempo). O Super psi nasce como uma explicação naturalmente fora do escopo de qualquer teste, já que ele, por definição, associa à mente determinadas características que tornam muito difícil a 'contra prova' ou o processo do 'falsificacionismo' no sentido proposto pelo Filósofo Karl Popper. Em outras palavras, ao se assumir Super Spsi fica muito difícil a proposição de uma observação onde Super Psi possa ser 'falsificado' ou demonstrado como não existente. Logo, as teorias de Super Psi são suspeitas do ponto de vista epistemológico.

Mas Super psi tornou-se um mecanismo de crença de céticos moderados que, não aceitando a idéia da sobrevivência, não podem deixar de aceitar a existência dos fenômenos. Ai entra a necessidade de estudos Antropológicos que podem:
  • Lançar luz quanto a condições de ocorrência de fenômenos psíquicos;
  • Chamar a atenção para a grande coincidência de narrações - ou seja, explicações que os antigos e outro povos davam ao fenômeno do mediunismo e suas manifestações, atentando para a grande coerência entre tais descrições;
  • Ajudar a classificar fenômenos e lançar luz quanto as verdadeiras fontes ou origens desse fenômenos.
  • Pode-se obsevar, através da antropologia, a supressão ou aumento das ocorrências mediúnicas, conforme se eliminem ou aumente os 'estimulos históricos' ou outras condições a serem determinadas no momento da ocorrência psíquica.
Finalmente, Hunter chama a atenção para uma corrente de antropólogos modernos que adota uma postura diferente:
Mais recenemente, entretanto, teóricos tem argumentado em favor de tratar tais crenças tal como os nativos o fazem. Edith Turner (1993, 1998, 2006) tem se colocado favorável a essa perspectiva, especialmente em termos de interpretar a crença na existência e atuação dos Espíritos no campo. Outros antropologistas tem também considerado os Espíritos seriamente, mesmo que não no nível ontológico real: por exemplo, Nils Bubandt (2009) explorou a atuação política de Espíritos que se comunicam com médiums 'possuídos' em Norte Maluku - tratando-os como metodologicamente reais. Aqui vemos a noção antropológica da ação consciente expandida para incluir outras formas de personalidade.
Por que isso é importante? Porque não é possível fazer avançar o conhecimento antropológico ao se desconsiderar a opinião dos nativos tais como elas se apresentem. Esperamos, assim, que uma nova era no conhecimento da verdadeira natureza do Homem se inicia a partir da adoção dessa postura mais aberta.

Referências
  • Bubandt, N. (2009). “Interview with an Ancestor: Spirits as Informants and the Politics of Spirit Possession in North Maluku.” Ethnography 10(3): 291-316.
  • De Martino, E. (1972). “Magic: Primitive and Modern”. London: Tom Stacey Ltd.
  • Lang, A. (1896). “Cock Lane and Common Sense.” London: Green & Co.
  • Turner, E. (1993). “The Reality of Spirits: A Tabooed or Permitted Field of Study?” Anthropology of Consciousness 4(1): 9-12.
  • Turner, E. (1998). “Experiencing Ritual”. Philadelphia: University of Pennsylvania Press.
  • Turner, E. (2006). “Advances in the Study of Spirit Experience: Drawing Together Many Threads.” Anthropology of Consciousness 17(2): 33-61.

9 de janeiro de 2011

Crenças Céticas X - Positivismo lógico e indutivismo: as duas bases do ceticismo dogmático.


"Acho que o mais importante defeito dele... era que quase tudo nele era falso." (A. J. Ayer, principal defensor do Positivismo lógico na Inglaterra, sobre o Positivismo lógico).

Muita gente acha que filosofia é perda de tempo, um conhecimento que serve a 'gente metida' ou intelectuais com pouco senso prático. Na verdade, todas as nossas ações e decisões se baseiam em motivações interiores que, muitas vezes, são derivadas de crenças e suposições que são objeto de estudo da filosofia.  Uma vez que tomamos contato com as várias doutrinas filosóficas que existem, podemos compreender melhor porque as pessoas agem de determinada maneira, e até mesmo, prever seu comportamento.

Esse é o caso do pseudoceticismo ou ceticismo dogmático que tem sido objeto de nossas análises aqui.  Podemos nos perguntar: quais são os seus fundamentos filosóficos? A resposta não pode ser outra: o positivismo lógico e o indutivismo ingênuo.

Os positivistas lógicos descrevem o mundo como derivado dos sentidos. Para eles só há sentido em estudar aquilo que esteja diretamente acessível aos sentidos humanos, fornecendo uma visão de mundo essencialmente fundamentada no 'empirismo'. Acreditamos que o positivismo lógico foi uma resposta ao excesso de cuidados com conceitos e ideias que não tem suporte empírico, mais particularmente contra aqueles objetos da teologia dogmática. Historicamente, sabemos que o positivismo lógico (nascido no assim denominado 'círculo de Viena' na década de 1920) foi uma resposta à filosofia de Hegel. 

Um positivista lógico acredita que evidência observacional é indispensável para uma descrição correta do mundo. Na verdade, ele vai mais além e só acredita naquilo em que se possa fornecer uma evidência empírica. Portanto, a descrição positivista do mundo é uma descrição necessariamente pública que despreza entidades que não sejam publicamente acessíveis.

Essa visão positivista tem reflexo imediato nas decisões de investimentos de pesquisa. Uma vez que recursos são escassos, é razoável que o modo 'positivista' de ver o mundo tenha maior influência, já que ele acaba por significar risco menor ao investimento. Parece ser muito menos arriscado investir dinheiro em pesquisas sobre objetos que sejam diretamente acessíveis aos sentidos (que se pode ver, tocar, ouvir ou perceber) do que com aqueles que não são. 

Hoje em dia, o positivismo lógico originalmente criado no círculo de Viena não é mais defensável. A física moderna, a genética e outros ramos da Ciência demonstraram que, para que teorias científicas tenham sucesso, é preciso postular a existência de entidades que não são diretamente acessíveis aos sentidos. Se tais entidades existem ou não é outro problema, bem mais complexo, que o leitor pode aprender buscando por  textos sobre o 'realismo científico'. Por isso, o positivismo se transformou, e antes o que era tomado como 'necessidade de evidência dos sentidos' é hoje substituído por 'evidências empíricas' dentro do chamado 'método científico'. 


No desenvolvimento e justificação desse método, os neopositivista são guiados pelo indutivismo, que se tornou outro fundamento para o ceticismo dogmático. Por 'indutivismo' queremos dizer uma postura filosófica que aceita que o conhecimento pode ser gerado a partir do amontoado de evidências ou observações de fatos singulares. Acredita-se que conhecimento científico genuíno e altamente confiável possa ser criado a partir da observação de um número finito de fatos, desprezando-se o papel que teorias têm na orientação e condução de experimentos ou proposição de observação de fatos. Para o indutivista, as teorias são, na verdade, o resultado do processo de fazer ciência e não tem outro papel a desempenhar. Embora tal postura já tenha sido conclusivamente rejeitada, ela tem grande influência na maneira como o processo de se fazer ciência é defendido popularmente, embora seja duvidoso que tenha qualquer influencia na maneira como Ciência de qualidade é gerada. 

Analisemos, por exemplo, a frase abaixo, traduzida de seu original em inglês. Essa frase foi tirada da 'rationalwiki' um site semelhante à enciclopédia wiki mas que se auto intitula 'racional':

Em geral, fenômenos paranormais colocam-se fora do que seria normalmente esperado ocorrer no mundo real. Além disso, tais fenômenos não podem ser reproduzidos sob condições controladas e, portanto, não podem ser investigados pelo método científico. Por essa razão, eles são classificados como pseudociência. (em http://rationalwiki.org/wiki/Paranormal)

Por que a ênfase na reprodutibilidade e controle? Porque o indutivista acredita que o processo de indução só funciona sob determinadas condições, a mais importante delas é a necessidade de um grande número de observações


Vejamos um exemplo:

Bares noturnos são lugares ideais para se comprovar a tese de que muitos brasileiros são bêbados.

Suponhamos que alguém todas as sextas-feiras, em determinado horário à noite visitasse grande quantidade de bares ou casas noturnas em uma grande metrópole no Brasil e verificasse a presença de pessoas embriagadas. Ele então visitaria outras capitais, sempre à noite, aos sábados e verificaria ainda mais pessoas embriagadas. De acordo com o processo indutivista de fazer ciência, seria autorizado a esse pesquisador enunciar a lei:

"Os brasileiros são bêbados em geral".

Note que, para que a afirmação tenha valor, não é suficiente observar um grupo pequeno de brasileiros se embriagando, mas muitos, talvez milhares, o que é facilmente atingido ampliando a 'base de dados' ou pesquisa de campo. 

Além disso, faz parte da crença indutivista pensar que os dados ou os fatos contem em si tudo o que é necessário para se chegar ao enunciado final ou teoria. Assim, de acordo com tal princípio de 'objetivação dos fatos', o pesquisador não pode fazer qualquer consideração adicional (como, por exemplo, sobre as razões para pessoas beberem em bares à noite) sob pena de ser acusado de parcialidade ou de ser 'tendencioso' em sua pesquisa.

Por que essas considerações são importantes? Porque na defesa de explicações para a fenomenologia dos chamados 'eventos paranormais' (quer dizer, fenômenos espíritas), somos constantemente bombardeados com acusações pseudocéticas da necessidade de 'reprodutibilidade' de experimentos. Isso acontece justamente por influência da crença indutivista que, não tendo papel a desempenhar no desenvolvimento da Ciência (como mostram estudos em História) é invocada para invalidar os fatos ou negar o status de ciência a qualquer teoria ou explicação para esses fatos (que transcendam às explicações populares de embuste ou fraude).

Os fenômenos espíritas (a maioria girando em torno das faculdades mediúnicas) são eventos que exigem condições especiais para ocorrência. Tais condições singulares são apreendidas quando a teoria desses fenômenos é compreendida. Somente assim é possível 'desenhar' experimentos que possam ser repetidos até certo ponto. A confirmação de resultados no campo da pesquisa dos fenômenos espíritas é possível, sem a necessidade de um número arbitrário de repetições. Tais confirmações foram feitas no passado e apontam para a excelência das explicações que sustentam a continuidade da existência para além do corpo físico, e postulam a existência de entidades não observáveis de forma muito mais direta que muitas teorias da física ou da biologia o fazem para determinados fenômenos raros e inacessíveis ao laboratório. 

Quanto mais próximos estivermos da verdade com relação às origens e causas desses fenômenos, tanto mais aptos estaremos para reproduzí-los e aproveitá-los de forma coerente e responsável. Isso explica porque, em um ambiente onde prevaleça o ceticismo, a descrença e o deboche dessas ocorrências, elas dificilmente poderão ser observadas e, muito menos, explicadas.

Para saber mais

Sobre o Positivismo Lógico:
Sobre o Indutivismo ingênuo:

Referências
  • Suppe, Frederick, The Positivist Model of Scientific Theories, in: Scientific Inquiry, Robert Klee editor, New York, USA: Oxford University Press, (1999), pp. 16-24.
  • Chalmers, A. F. O que é Ciência, afinal? ed. Brasiliense, 1a edição (1983).