27 de outubro de 2011

Pragmática e intenção nas cartas psicografadas de Chico Xavier.

Psicografia em Italiano, F. C. Xavier.
Este post contém um artigo submetido à revista 'Reformador' da Federação Espírita Brasileira em 7/fev/2011 que teve publicação recusada em 8/set/2011.

De forma bastante simplificada, um processo de comunicação é um conjunto de etapas que leva uma mensagem de um emissor a um receptor. Esse é a imagem popular de um processo ou mecanismo de comunicação, e podemos denominá-la de modelos de ‘transferência de informação’. Entretanto, ela é severamente limitada, embora pareça dar conta do processo de comunicação na maioria dos casos, principalmente com sistemas eletrônicos ou meios outros meios de comunicação (exemplos vão desde sinais de fumaça, telégrafos até o telefone). Em tempos recentes, boa parte da pesquisa sobre o processo de comunicação é desenvolvida através de várias teorias linguísticas, embora outras áreas de pesquisa (como a semiótica) tenham como objeto de estudo a comunicação não baseada na linguagem dos seres humanos, inclusive desenvolvendo modelos para comunicação entre seres vivos (plantas, animais etc). Modernas teorias linguísticas buscam explicar aspectos do processo de comunicação que não podem ser explicados pelos modelos simples de transferência de informação. Um processo eficiente de comunicação não é aquele em que partes ou pedaços de informação são transferidos para o recipiente e este, por sua vez, vai montando um quadro ou interpretação que é proporcional à quantidade de mensagens transmitidas. Há vários níveis ‘hierárquicos’ de informação dentro de uma mensagem e, para se ter uma ideia limitada desses níveis, é suficiente considerar a linguagem escrita.

Um texto escrito de próprio punho por alguém (emissor) a um seu conhecido (receptor) é um exemplo rico para os vários níveis de sinais linguísticos que se interrelacionam dinamicamente formando uma mensagem que só pode ser convenientemente compreendida pelo receptor. O primeiro nível existente é o da morfologia, afinal, se a mensagem é enviada pelo emissor, ela contém sinais grafados que o identificam univocamente. Uma vez ‘transcrita’ a mensagem em um meio que é independente da morfologia, aparecem então tipos de sinais que revelam outros níveis hierárquicos: a sintaxe (ou, que diz respeito ao cumprimento de regras próprias do idioma em que a mensagem é grafada) e a semântica (ou, que diz respeito ao significado das palavras e frases contidas no texto). Se a relação entre o emissor e o receptor sempre se deu, por exemplo, utilizando a língua portuguesa, então é natural que a sintaxe obedecida será a do português. No que diz respeito à semântica, o significado das palavras e grupos de palavras formando frases inteiras pode ser feito tanto se respeitando a regra (o chamado léxico) comum ou não. É muito comum que, entre grupos privados, regras semânticas particulares sejam utilizadas. Nesse caso, qualquer análise externa que pretenda inferir um significado ao texto escrito sem o conhecimento de um léxico particular é severamente limitada. Se esse léxico não está disponível em parte alguma, não é possível codificar corretamente o significado do texto, por mais que nos esforcemos. Um exemplo comum de problemas desse tipo é a tentativa de grupos dogmáticos cristãos em interpretar literalmente passagens ou textos inteiros do Velho e do Novo Testamento.

Há, entretanto, um último nível na hierarquia de sinais de comunicação que está muitas vezes oculto na mensagem: o da pragmática. Além do sentido aparente dado pela semântica, a mensagem do emissor é gerada de forma tal que apenas o receptor está completamente capacitado para compreendê-la. Por exemplo, se meu amigo, morando na Austrália, escreve a mim (receptor) uma carta contando das inúmeras belezas naturais daquele continente, seu objetivo pode ser apenas remover meus receios presentes de fazer uma visita a ele. Afinal, apenas ele sabe que eu não tenho o menor interesse em visitá-lo. Qualquer outra pessoa, ao ler a mesma carta, vai pensar que meu amigo apenas está empolgado com as belezas naturais daquele país. Embora morfologia, sintaxe e semântica sejam visíveis para todos (ou seja, são níveis de conhecimento linguístico disponíveis publicamente), o nível pragmático não é. Em todo o processo de comunicação, competência pragmática deve existir por parte do emissor para que o processo seja realmente eficiente. Isso é possível porque uma comunicação verdadeira só ocorre entre emissor e receptor que compartilham crenças anteriormente adquiridas.

Em paralelo com a questão da pragmática nas mensagens, há ainda questões ligadas à finalidade ou objetivo do texto que denominamos de ‘intenção’. Afinal pode ser que, dentre os inúmeros objetivos do emissor com o texto, o menor deles é o de comunicar alguma coisa. Mensagens podem ter como objetivo provocar determinadas impressões no receptor. Um exemplo interessante é o do indivíduo que chega a um posto de gasolina com seu carro e um pneu furado. Ele então fala para o primeiro funcionário do posto: ‘o pneu furou’ e aponta para o problema. Essa mensagem não tem como objetivo dizer que o pneu foi avariado, mas fazer com que o receptor faça alguma coisa diante da necessidade de se trocar o pneu. Fala-se assim no problema da ‘subdeterminação da intenção comunicativa’, na presença de expressões ‘semanticamente mal definidas’ e nos ‘atos não comunicativos’ (Bach, 1979), todos eles representando aspectos privados do processo.

É um exercício interessante analisar e encontrar cada um dos níveis de hirarquia de sinais de comunicação nas cartas psicografadas por Chico Xavier. Cada um deles, morfologia, sintaxe, semântica, pragmática e intenção aparecem vividamente em diversas cartas, embora não extensivamente em todas ao mesmo tempo. Isso revela aspectos ocultos do processo de comunicação mediúnico que está de pleno acordo com a expectativa de interferência, e que ainda não são bem compreendidos. Ao contrário do que se pode pensar, a presença de interferência por parte do médium nas psicografias é uma evidência forte de processo de comunicação, uma vez que nenhum sistema de comunicação está imune a interferências. Existe interferência em cada um dos aspectos do processo, embora, para alguns deles, ela é menos extensiva. Quanto maior o nível considerado, menor a interferência por parte do médium. Reciprocamente, quanto maior esse nível tanto mais privada é a manifestação do nível (ver Figura abaixo).  

A pragmática e a intenção nas cartas estão diretamente ligadas a forte impressão causada aos parentes dos comunicantes que foram chamados a ‘decodificar’ o conteúdo, justamente pela presença de elementos que não estão publicamente disponíveis. É necessário reconhecer que, para que a estratégia do emissor tenha qualquer sucesso, um conjunto de crenças deve ser compartilhado entre o emissor e o receptor e que essas crenças não estão disponíveis antes (ou depois) do ato mediúnico. Se comunicar-se não é apenas ‘transportar’ informação, as cartas psicografadas por Chico Xavier (nosso exemplo mais notório) só podem ser explicadas se o médium teve ajuda explícita do emissor para escrever cada uma delas. O emissor (Espírito) é o agente que detém completamente a competência pragmática e a intenção, enquanto que o médium é o intermediário, interferindo ainda como fonte de ruído irredutível no processo que se manifesta nos níveis inferiores. Embora os aspectos mais superiores da pragmática e da intenção sejam os menos imunes à ação de ruído (interferência) pela mente do médium, são igualmente notáveis as comunicações ‘xenográficas’, ou escritas em uma sintaxe (e semântica) diferente da conhecida pelo médium, que demonstram que o Espírito tem o controle sobre níveis inferiores, além dos superiores. Esse é o melhor modelo para se explicar os fenômenos e os dados oriundos das cartas psicografadas. De acordo com esse modelo simplificado de comunicação, é compreensível também que o caráter ‘automático’ ou ‘mecânico’ da comunicação é tanto maior quanto mais completo deva ser o processo de comunicação nos vários níveis em que ele se manifesta. 

Nosso esforço aqui é parte de uma iniciativa que resultou em um pequeno texto sobre a aplicação das modernas teorias da linguagem e comunicação aos dados que se obtém das cartas psicografadas por Chico Xavier e que foi publicada na revista ‘Paranthropology’ (Xavier, 2010). Essa análise pode também ser aplicada a produções psicográficas de outros médiuns. Mais importante do que isso, ela revela que os aspectos justamente ‘não públicos’ são os mais importantes na caracterização e identificação do emissor. Não é possível explicar o conteúdo pragmático invocando-se aquisição de conhecimento por parte do médium ou mesmo simples emulação. Os detalhes pragmáticos e intencionais dependem de uma quantidade grande de conhecimento que é compartilhado historicamente entre o emissor (Espírito) e seus familiares (receptores) e que não estão disponíveis publicamente e que não se podem armazenar. Mesmo alguns aspectos públicos (como a semântica) dependem de conteúdo privado, principalmente quando o emissor intencionalmente faz uso de palavras com significado diferente do usual.

Esperamos que novas pesquisas sejam dirigidas ao estudo dos vários níveis que caracterizam uma comunicação mediúnica efetiva além de outros aspectos. Parte disso já tem acontecido, como um estudo recente sobre o papel das citações (Rocha, 2010) nos textos psicografados. Tais estudos descobriram textos desconhecidos de Humberto de Campos citados por ele em Espírito. Esse estudo não é apenas importante para caracterizar os vários níveis encontrados nas mensagens e, assim, responder a questionamentos céticos, mas também para formar uma imagem mais precisa do processo psicográfico em si. Em particular eles podem revelar detalhes sobre como se dá a interação entre a mente do médium e a do emissor a fim de que o processo de comunicação seja o mais transparente possível.

Referências
  • Arantes H. M. C & Xavier F. C. O conteúdo das cartas foi publicado em várias obras publicados pela Editora do Instituto de Difusão de Araras e GEEM (ver, por exemplo, Ramacciotti C. & Xavier F. C. (1975), Jovens no Além).
  • Bach K. & Harnish R. M. (1979), Linguistic communication and speech acts, Cambridge Mass: MIT Press.
  • Grumbach C., Gentile L. A. & Pelele P. P. (2010), As cartas psicografadas de Chico Xavier, Crisis Produtivas and Ciclorama Filmes.
  • Rocha, A. C. (2010). Uma estratégia para a construção autoral na psicografia: as citações. A Temática Espírita na Pesquisa Contemporânea, textos selecionados. Editado por CCDPE-ECM. 
  • Xavier A. (2010). ‘Pragmatic and intention in automatic writtings: the Chico Xavier case’, Paranthropology, vol II, Numero 1, p 47-51. Disponível publicamente em http://paranthropology.weebly.com/
Ver também: Cartas psicografadas neste blog em 3 partes.



22 de outubro de 2011

Memória Genética e Reencarnação

Cada da revista 'Espiritismo & Ciência' (número 90), 
com texto de nossa autoria . Editado pela Mythos.

Seções do artigo

1 - Introdução;
2 - Memória Genética e Eugenia;
3 - Consequências da tese da memória genética para a visão espiritualista do ser humano;
4 - Qual é a situação atual?

5 - Considerações finais.
Agradecimentos
Referências

Descrição

A matéria de capa da revista Espiritismo & Ciência 90 fala sobre memória genética e reencarnação. Esse conceito de memória genética refere-se à suposta capacidade de herdarmos não apenas memórias dos antepassados, mas também suas personalidades. Ele tem sido utilizado para tentar refutar o conceito de reencarnação, mas sem sucesso. A matéria é assinada pelo físico Ademir Xavier. Os passarinhos do bem de Marcio Baraldi, os Vapt&Vupt continuam firmes com suas mensagens de paz e reflexão. A edição também traz comentários e sinopses de livros espíritas, para você escolher sua leitura preferida. José Sola continua com a série de textos a respeito dos livros de Chico Xavier, agora com a obra Há 2000 Anos, uma das mais populares escritas pelo Espírito Emmanuel. Na seção "Desmistificando o Dogma da Reencarnação", o doutor Wladimyr Sanchez responde perguntas dos leitores, aqui com uma longa explanação sobre o conceito de reencarnação que surge no livro Missionários da Luz, de André Luiz. Paulo Neto traz um interessante texto explicando qual a primeira obra espírita que deve ser lida, baseando em informações fornecidas pelo próprio Alan Kardec. Carlos e Carmen Imbassahy abordam as pesquisas científicas que permitem dizer-se que o universo não é criação do Deus religioso que conhecemos. No texto de Rogério Coelho, você poderá ler a respeito da relação entre ciência e religião, a partir do ponto de vista de Allan Kardec e de Joanna de Ângelis.

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12 de outubro de 2011

Vídeo II - 'Visitantes da outra margem' - Fenômenos de Materializações descritos por Tom Harrison (Inglaterra)

Sra. Agnes Abbott.

Fenômenos de Aporte

Segunda parte do vídeo Visitantes da 'outra margem' com entrevista de Tom Harrision.

Conteúdo

00:00 Segunda parte da entrevista;
01:38 Trecho de uma palestra com T. Harrison onde ele explica os primeiros fenômenos de aporte;
05:20 Continuação da entrevista onde T. Harrison mostra objetos que foram obtidos durante várias sessões de aporte;


Outros Vídeos
O colégio Arthur Findlay.



3 de outubro de 2011

Kardec sobre o Ceticismo.


"Se eu estiver errado, basta apenas um crítico." - Albert Einstein (Seu comentário à primeira edição do livro 'Hundert Autoren gegen Einstein', ou 100 autores contra Einstein, em 1931)

Reunimos aqui algumas citações de Allan Kardec sobre o ceticismo. Outras referências dele sobre o assunto podem ser encontradas nas diversas obras que formam a codificação. Como pioneiro no desbravamento dos princípios espiritualistas e sua verificação por meio de fenômenos considerados insólitos, Kardec enfrentou problemas que legiões de cientistas (metapsiquistas e, modernamente, parapsicólogos) iriam enfrentar quando a questão era defender e explicar de forma satisfatória a fenomenologia psíquica. E a luta que ele teve que enfrentar foi dupla: primeiro contra aqueles que negavam a realidade dos fenômenos, depois contra os que, os aceitando, propunham explicações ilógicas, em franca contradição com a multiplicidade de ocorrências e detalhes observados. 

É importante que se diga que Kardec nunca teve a pretensão, como muitas críticas procuraram mostrar ao longo dos anos, em ser árbitro da verdade:
Confessamos, sem constrangimento, nossa insuficiência quanto aos pontos para os quais não temos resposta. Assim, longe de repelir as objeções e as perguntas, nós as solicitamos (desde que não sejam ociosas e nem nos façam perder tempo com futilidades), pois constituem um meio de nos esclarecermos. (RS, 1858, p. 294).
Há limitações ao conhecimento espírita, isso é um fato que, ao invés de diminuir a importância da doutrina como se pode pensar inicialmente, a engrandece. De fato, o valor de uma teoria está na capacidade que ela tem em fornecer explicações elegantes para uma grande quantidade de fatos. Ora, uma vez que diga alguma coisa sobre o mundo, é igualmente certo que a teoria tem limites. Não é objetivo de uma ciência explicar todo e qualquer aspecto do mundo. Muitos críticos acreditam que o Espiritismo, enquanto uma visão do mundo, deveria fornecer respostas para tudo o que se observa nele. Isso não é verdade. A ciência da matéria também tem suas dificuldades para explicar determinados aspectos da Natureza. Isso é normal e esperado no processo de produzir conhecimento científico que diga alguma coisa sobre o mundo. Por outro lado, muitos críticos controem (e ainda o fazem) labirintos de hipóteses e explicações sem se preocupar em unificar conceitos e buscar uma causa ou origem comum para o que se observa. Para cada fenômeno, uma explicação diferente. Dito isso, é importante prestar atenção ao tipo de crítica :
É logica elementar que, para discutir uma coisa é preciso conhecê-la, visto que a opinião de um crítico só tem valor quando ele fala com perfeito conhecimento de causa. Só então a sua opinião, ainda que errônea, pode ser levada em consideração. Mas, que importância tem ela acerca de um assunto que ele ignora? O verdadeiro crítico deve dar provas, não somente de erudição, mas também de profundo saber com respeito ao objeto em exame, de julgamento são e de imparcialidade a toda prova, sem o que o primeiro menestrel que surgisse poderia arrogar-se ao direito de julgar Rossini e um iniciante em artes o de censurar Rafael. (RS, 1860, p. 269) 
As condições que Kardec aponta para caracterizar um crítico sério estão descritas acima e é instrutivo enumerá-las abaixo:
  1. Um crítico sério deve ter erudição. Por 'erudição' entende-se uma bagagem mínima de conhecimento a respeito do que se pretende criticar. É fácil ver porque essa condição é necessária;
  2. 'Profundo saber com respeito ao objeto em exame'. Esse 'profundo saber' distingue-se da mera 'erudição', pois essa última pode ser caracterizada apenas como quantidade de informação. Há uma diferença entre o saber verdadeiro e a mera informação. Estar informado a respeito de algo é muito diferente de saber porque esse algo existe, como ele ocorre, quais são as condições para que ele ocorra e assim por diante;
  3. 'Julgamento são e imparcialidade a toda prova'. Colocamos essas duas condições justas, pois a 'imparcialidade' é consequência do 'julgamento são'. O 'julgamento são' implica em saber manejar a lógica dentro de leis que são universalmente aceitas, embora essa capacidade possa ser apenas tacitamente apreendida (é fato que há pessoas que tem dificuldade em apreender a lógica em determinados assuntos, assim como há pessoas que tem dificuldade para matemática, outras para as artes e assim por diante).  Se um indivíduo tem dificuldades com raciocínio lógico, ele dificilmente será um bom crítico pois sua opinião, frequentemente, será parcial e tendenciosa. Ao se observar a presença de tendenciosismo e a parcialidade, toda a crítica está comprometida, pois coexistem 'interesses escusos' ou implícitos que o crítico, se for honesto, deverá declarar. 
Tais características que fazem parte de um 'crítico de primeira linha', manifestam-se na maneira como a crítica é desenvolvida. É comum observar-se ataques dirigidos a determinados pontos da doutrina por pessoas  reconhecidamente iniciantes no assunto. Mas isso não ocorre apenas com o Espiritismo. Em toda e qualquer área do conhecimento onde se tem uma teoria ou escola que diga algo positivo a respeito do mundo que nos cerca, é possível apreciar esse fenômeno social, o de detratores despreparados e desesperados em refutar e combater (2). O antigo provérbio português, "só se atiram pedras em árvores que dão frutos," sempre deve ser lembrado. Qual é a causa desse fenômeno? Acreditamos que seja uma tentativa de reafirmação pessoal que pode se manifestar em massa, no coletivo, mas isso nos leva a um assunto que foge ao escopo desse post. Desta forma, a polêmica é consequência do tipo de discussão, que é gerada dependendo da qualidade da crítica. E, sobre isso, explica Kardec:
"Mas há polêmica e polêmica. Existe aquela ante a qual jamais recuaremos: é a discussão séria dos princípios que professamos. Todavia, mesmo nesse caso, faz-se preciso uma distinção: se se trata apenas de ataques gerais dirigidos contra a doutrina, sem outro fim que o de criticar, e feitas por pessoas arraigadas em rejeitar tudo quanto não compreendem, nada disso merecerá a nossa atenção; o terreno que o Espiritismo ganha a cada dia é resposta suficientemente peremptória e prova de que seus sarcasmos não tem produzido efeito." (RS, 1858, p. 293)
Da mesma forma como se pode descrever detalhes sobre o tipo de crítica, existem diferentes tipos de discussões ou 'polêmicas' como Kardec descreve acima. Em particular, deve-se manter distância de polêmica feita por indivíduos 'arraigados em rejeitar tudo quanto não compreendem'. É fácil entender a razão disso diante das características já enumeradas acima. O que fazer então? Kardec recomenda:
"Deixando aos nossos contraditores o triste privilégio das injúrias e das alusões ofensivas, não os seguiremos no terreno de uma controvérsia sem objetivo; dizemos sem objetivo, porque ela não os conduziria à convicção, sendo perda de tempo discutir com pessoas que desconhecem as primícias do que falam. Só nos cabe dizer-lhes: estudai primeiro, e veremos em seguida. Temos outras coisas a fazer do que falar àqueles que não querem ouvir. Por outro lado, que importa, afinal a opinião contrária de tal ou qual pessoa? Será essa opinião de tão grande importância que possa entravar a marcha natural das coisas? As maiores descobertas encontraram os mais rudes adversários, o que não as fez perecer. Deixamos, pois, a incredulidade murmurar em torno de nós, e nada os desviará da rota que nos é traçada pela gravidade mesma do assunto em pauta." (RS, 1860, p. 1)
No comentário acima, Kardec de forma lógica recomenda o silêncio contra determinados tipos de crítica. Fazem parte delas, as que surgem naturalmente de vários tipos de ceticismo, tanto aqueles que se põem contra os fenômenos como os que se colocam contra a teoria. Tal como no exemplo citado sobre a Teoria da Relatividade (1), Kardec chama a atenção ao fato de muitos princípios inovadores não terem sido afirmados senão depois de muitas discussões. Entretanto, muitos críticos podem seguir um caminho ainda mais extravagante. Sobre isso também escreveu Kardec:
Cremos que, em certos casos, o silêncio é a melhor resposta. Há, por outro lado, um gênero de polêmica que nos impomos a norma de abster-nos: é a que pode degenerar em personalismos. Ela não só nos repugna, como nos tomaria um tempo que podemos empregar mais utilmente, além do que seria bem pouco interessante para os nossos leitores, que assinam o jornal para se instruírem e não para ouvir diatribes(2) mais ou menos espirituosas. Ora, uma vez embrenhados nesse caminho, dele seria difícil sair; eis porque preferimos ai não entrar, e julgamos que assim o Espiritismo só terá a ganhar em dignidade. (RS, 1858,p. 293)
Uma 'polêmica personalista' é um debate cujo objetivo implícito é a disputa pessoal buscada por alguns dos polemistas. Aqui estão em jogo forças que distanciam muito o debate de qualquer tipo de discussão equilibrada e imparcial. De fato, não pode haver imparcialidade onde se busque determinados tipos de ganhos (que podemos considerar 'morais', em contraposição a ganhos materiais ou pecuniários). O gosto de se sentir apreciado e vencido em um debate é recompensa considerada de alto preço, que sempre ocorreu em vários setores da sociedade. Infelizmente também reconhecemos que muitos espíritas e mesmo alguns setores do movimento espírita endossam esse tipo de discussão contra a qual Kardec colocou-se já em 1858. E isso por uma boa razão: por se tratar simplesmente de perda de tempo. Tal como qualquer outro recurso, o tempo também é um bem que devemos considerar diante de determinados tipos de ganho, lembrando ainda que o tempo é recurso irreversível: uma vez perdido, é impossível recuperá-lo.  Kardec reconhece ser muito difícil sair desse tipo de caminho porque ninguém quer se sentir vencido, ainda que a discussão tenha objetivo  intangíveis e de pouquíssima importância.

O julgamento da História

Que é feito hoje da memória dos que criticaram Kardec na sua época? Tentamos nos lembrar de alguns nomes do passado. Para ajudar o leitor, listamos alguns desses nomes nas notas de Apêndice deste post (3). Com essa nota, também rendemos nossa justa homenagem a eles.

O Ceticismo como um vício filosófico.

Finalmente, relembramos o que disse Kardec sobre o ceticismo exacerbado. Para ele ficou claro que ele se caracterizava mais como um vício filosófico, algo que nasce não só da falta de conhecimento, mas da falta de madureza intelectual:
Há céticos que negam até à evidência, nem milagres poderiam convencê-los. Há mesmo aqueles que ficariam bem desgostosos se fossem forçados a crer, porquanto seu amor-próprio sofreria com a confissão de que estavam enganados. Que responder a pessoas que por toda parte só vêem ilusão e charlatanismo? Nada; deve-se deixá-los tranquilas, a repetirem, enquanto quiserem, que nada viram e até mesmo que nada lhes pode ser mostrado. Ao lado desses céticos endurecidos, há os que querem ver a sua maneira; os que, firmados numa opinião, a esta tudo querem ajustar, não compreendendo existirem fenômenos que não podem sujeitar-se a sua vontade. Eles não sabem ou não querem adaptar-se às condições necessárias. (RS, 1858, p. 153)
Entre os críticos, há os que poderíamos chamar de 'analfabetos filosóficos' que parecem se enquadrar na classe de contraditores de que fala Kardec. Procuram eles ajustar tudo o que vêem a sua maneira muito particular de ver o mundo, não compreendem - ou não querem compreender - que existe uma realidade maior que não se deixa perceber da mesma forma que a 'realidade menor' de suas vidas particulares, que existem milhares de nuances e detalhes nos fenômenos da Natureza a requerer esforço e dedicação (as vezes de vidas inteiras) para que sejam compreendidos. Jamais negaremos a tais o direito de não acreditar, afinal é assim que vivem os homens, cada um segundo sua visão de mundo, mas seria justo que pudessem destruir fenômenos ou apagar a realidade tão só com efeitos de retórica? 

De qualquer forma, o efeito de suas palavras, ao contrário do que se pode imaginar, é fazer propaganda justamente dos princípios ou ideias que pretendem combater.

Referências


H. Israel, ed (1931). Hundert Autoren gegen Einstein. Leipzig: Voigtländer.
Z. Wantuil e F. Thiesen (1987), Allan Kardec - Pesquisa Bibliográfica e Ensaios de Interpretação.  Vol. II. Ed. FEB.

Notas de Apêndice

(1) Um exemplo clássico tirado da Física moderna é o da teoria da relatividade de Einstein. Para isso ver 'Críticas à teoria da Relatividade'. Poucos sabem que, ao longo de sua carreira como cientista, Einstein enfrentou uma crítica furiosa contra suas conclusões e teorias. Por que? Uma resposta razoável é porque a Relatividade possui respostas definitivas para os fenômenos que ela se propõe a explicar. Mas, igualmente possível é imaginar que muita gente invejou a notoriedade que Einstein adquiriu com o lançamento de sua teoria. Assim, não é difícil perceber porque muitos lançam críticas a médiuns modernos, que alcançaram notoriedade em vida. Há aqui muito mais que mera descrença.

(2) Diatribes: s.f. Crítica severa e mordaz; escrito ou discurso agressivo e injurioso.

(3) A lista abaixo traz alguns nomes de críticos e céticos do Espiritismo da época de Kardec (ano da crítica entre parênteses). Talvez o leitor possa se lembrar de alguns deles. A referência principal de onde tiramos tais nomes é Z. Wantuil e F. Thiesen (1987).

Pe. François Chesnel (1859);
Dr. Jobert de Lamballe (1859);
Sr. Oscar Comettant (1859);
Dr. Louis Figuier (1860);
Sr. George Gandy (1860);
Sr. Émile Deschanel (1860);
Dr. Armand Trousseau (1862);
Pe. Lapeyre (1862);
Pe. P. Nampon (1863);
Sr. Robin (1863);
Pe. A. Barricand (1864);
Mons. Pantaleón Monserra Y Navarro (1864);
Sr. Rewile (1865);
Sr. Jules Claretie (1866);
Pe. Poussin (1868);