23 de novembro de 2011

Livro III - O Que Acontece Quando Morremos (Dr. Sam Parnia)

"Of course it is happening inside your head, Harry, but why on earth should that mean that it is not real?" J. K. Rowling, em "Harry Potter and the Deathly Hallows"

O Dr. Sam Parnia é conhecido pesquisador da área médica, especialista em cardiologia, com uma grande virtude: tem interesse declarado pelas ocorrências de 'experiências de quase morte' (EQM ou NDE - ver vocabulário abaixo para os termos comumente usados em inglês). Em seu livro 'O que acontece quando morremos - Um estudo sobre a vida após a morte', ele nos fornece um relato interessante de suas primeiras pesquisas no fascinante mundo das experiências de quem esteve a um passo de se encontrar com a 'morte', mas voltou para nos contar como é.

Embora o subtítulo sugestivo da edição em português 'um estudo sobre a vida após a morte', o livro é, em essência, uma introdução ao tema discorrendo de forma paralela como um relato em primeira pessoa do interesse do autor pelo assunto. A 'vida após a morte' aqui é uma referência ao curto estado em que passam determinados pacientes em coma profundo que descreveram posteriormente NDEs. Do ponto de vista espírita, uma EQM é um evento de desdobramento espontâneo causado pela parada cardíaca que revela de forma independente a natureza dual do ser humano.

Divisão de capítulos

O livro está dividido nos seguintes capítulos: 1 - Experiências de quase morte: da antiguidade aos dias atuais; 2 - Organizando o estudo de Southampton; 3 - Como é morrer?; 4 - Paradoxo científico; 5 - Compreendendo a mente, o cérebro e a consciência; 6 - Os ingredientes da vida; 7 - Isso é real; 8 - A Horizon; 9 - Implicações para o futuro. 

Faremos alguns comentários breves sobre alguns capítulos, enfatizando o que acreditamos ser mais relevante no que é apresentado pelo Dr. Parnia. O Capítulo 1 é, na verdade, uma introdução ao assunto, revelando que, desde cedo (adolescência), o autor teve grande interesse pelas questões relacionadas à "tanatologia". Há poucos relatos de NDE em 'casos da antiguidade' conforme relatado no Capítulo, exceto por uma citação de Platão (*). Os exemplos históricos de eventos de NDE fornecidos são muito mais recentes.  Mas o Capítulo 1 não deixa de ser interessante, pois o autor faz um resumo das teorias existentes para explicar as NDEs. Antes disso, convém apresentamos grosso modo uma visão cética sobre o assunto:
Todas as sensações de espiritualidade que sentimos ocorrem na mente. Os cientistas já provaram esse fato, e afirmam que isso tudo não passa de reações químicas, falta de oxigênio ou qualquer outro distúrbio mental que provoca alucinações, sensações de expansão da consciência, e outras variedades dos chamados " fenômenos espirituais; sendo assim, a viagem para fora do corpo poderia ser explicada como um fenômeno mental....também! (retirado da Internet: ver Blog 'Crônicas do Frank')
Para essa crítica, 'todas as sensações de espiritualidade que sentimos ocorrem na mente'. E as sensações "reais" ocorrem onde? Para muitos que não conseguem ver o problema de forma mais profunda, elas ocorrem no mundo externo... Para sabermos se os cientistas "estão realmente provando isso" convém consultarmos Parnia. Ele relaciona nos seguintes grupos as explicações chamadas 'ortodoxas' para o fenômeno:
  • Teoria das alucinações;
  • Teoria do cérebro moribundo (depleção de oxigênio);
  • Teoria do dióxido de carbono;
  • Teoria das drogas (e seus efeitos);
  • Teoria dos receptores químicos do cérebro;
  • Teoria da epilepsia do lobo temporal;
  • Teorias psicológicas;
Se existisse qualquer consenso aceito para o fenômeno, então não haveria tantas explicações propostas. O conjunto de 'explicações não ortodoxas' (na verdade só existe uma) é chamada por Parnia de 'teorias transcendentais'. Trata-se daquela que postula a continuidade da vida após a morte e que explica as NDEs como relatos de experiências reais passadas pelo indivíduo (NDEr).  Das explicações acima, a mais aceita nos meios acadêmicos (e que constantemente se vê colocada como uma 'explicação' para os fenômenos pela grande mídia) é a 'teoria do cérebro moribundo' que supostamente explica a NDE como efeito de falta de oxigênio. Entretanto, Parnia vai a fundo na questão e pondera:
Do ponto de vista médico, a falta de oxigênio é um problema corriqueiro num hospital. Muitos médicos operando em emergência deparam com o problema frequentemente, particularmente com pacientes cujos pulmões ou corações não estão funcionando muito bem, por exemplo, em casos de asma ou falência cardíaca. Cuidei de mais de 100 pacientes com falta de oxigênio. Quando os níveis caem, os pacientes ficam confusos e bastante agitados. Esse 'estado agudo de confusão', como é conhecido na medicina, é muito diferente da experiência de quase morte. (Parnia, 2008, p. 44)
Parnia argumenta que as 'teorias químicas do cérebro' (todas baseadas em alguma modificação severa nos níveis de substâncias presentes no tecido cerebral, seja oxigênio, drogas, receptores químicos etc) não são boas explicações porque elas não preveem as condições em que os NDE ocorrem. Em outras palavras, eventos de NDE não são observados costumeiramente quando essas condições estão presentes. Experiências de quase morte são eventos singulares, únicos, imprevisíveis, mas com estatística de ocorrência alarmante para serem desprezados. De nossa parte nos perguntamos: será que isso demonstra que os NDE não são produzidos apenas a partir de condições endógenas (e. g. parada cardíaca etc) mas também exigem fatores externos (independentes do indivíduo) para acontecer? Isso certamente explicaria a aleatoriedade dos eventos.

Quanto às 'teorias psicológicas', elas se aglomeram em torno da tese de que as experiências seriam supostamente produzidas pela mente como resposta a uma situação potencialmente traumática. Para lidar com a situação, o cérebro supostamente inventa toda cadeia de eventos relatados pelos paciente que passa por uma NDE. Parnia chama a atenção que muitas teorias simplesmente partem do pressuposto de que os relatos são invenções e alucinações, descartando anomalias observadas durante as ocorrências. 

O Capítulo 2 (Organizando o estudo de Southampton) é uma descrição algo irônica das dificuldades de se estudar esse tipo de fenômeno na prática. Nesse capítulo, Parnia descreve com humor sua tentativa frustrada de iniciar um estudo das EQM por meio de cartazes fixados em salas de UTI no hospital de Southampton. A ideia é que, se as visões de NDErs forem reais (no sentido de se referirem a eventos externos), eles seriam capazes de ver e descrever posteriormente o que está escrito nesses cartazes, fixados de forma que os dizeres se voltam para o teto. A narrativa de Parnia mostra que um estudo considerado minimamente 'científico' exige tratar  fatores que vão muito além daqueles disponíveis quando se manipulam coisas simples de laboratório. Esse é mais um exemplo que mostra que a chamada 'metodologia científica', se exportada ou extrapolada sem modificações e cuidados, nunca irá funcionar de forma satisfatória. A cada fenômeno, um método.

Relatos infantis de EQMs

No Capítulo 4 (paradoxo científico), Parnia descreve vários relatos de crianças (com idade que pode chegar a 6 meses de vida) que passaram por experiências de quase morte. Esses são, para mim, os relatos mais impressionantes.  Em muitos desenhos feitos posteriormente, é possível ver que a criança reproduz a situação de se ver a si própria fora do corpo, em outro corpo e de se encontrar com outros seres ou pessoas, gente 'morta' como elas mesmas relatam posteriormente.
Desenho infantil como um relato de uma EQM. É possível ver como a criança se vê, 
estendida sobre a mesa e flutuando acima dela. Fonte: HubPages.
No que consiste esse 'paradoxo científico' ? O Dr. Richard Mansfield, colega de Parnia, nos conta um caso de um paciente que sofreu parada cardíaca por mais de 20 minutos e permaneceu por 15 minutos totalmente sem assistência de ressuscitação. Segundo Mansfield:
Quando o vi, ele me contou que tinha visto tudo de cima e descreveu em detalhes absolutamente tudo o que aconteceu. Disse tudo o que eu tinha dito e feito, como checar seu pulso, decidir parar com a ressuscitação, sair do quarto, voltar depois, olhar para ele, checar novamente seu pulso e não recomeçar o processo de ressuscitação. Ele contou todos os detalhes de forma correta e precisa, o que era impossível, uma vez que não apenas ele estava sob parada cardíaca, e não possuía pulso durante a parada, mas sequer estava sendo ressuscitado por cerca de 15 minutos depois. O que ele me contou realmente me arrepiou, e até hoje eu nunca havia contado a ninguém porque sabia que não conseguiria explicar...  (Parnia, 2008, p. 103) 
De outra forma, se a consciência é produto da atividade cerebral, como pode alguém ficar privado de oxigênio por quase meia hora e se lembrar de detalhes durante o ocorrido? Se a consciência é simples produto de atividade de circuitos neuronais, como alguém pode ter consciência perfeita de acontecimento quando seus circuitos neuronais sequer tem energia para cumprir os processos primitivos de controle metabólico? O paradoxo está na consciência anômala adquirida pelo paciente quando da parada cardíaca, consciência que se manifesta inclusive como total ciência, visão e audição dos eventos ao redor, produzindo informação verificável. Portanto, na medida em que se consideram muitos detalhes nos eventos de EQM (ou seja, que se estudem a fundo esses fenômenos), descobre-se que elas não são meras alucinações ou invenções do cérebro. 

O Capítulo 5 (Compreendendo a mente, o cérebro e a consciência) é uma introdução ao conhecimento presente sobre as teorias de funcionamento do cérebro e da mente. O estilo de Parnia é bastante livre e ele consegue passar de uma descrição autobiográfica para técnica em poucas linhas. Nesse capítulo, o autor discorre sobre limitações das teorias convencionais do cérebro e adentra no campo da filosofia e de física quântica, esta última entendida como explicação não convencional. O Capítulo 6 (Os ingredientes da Vida) é uma extensão do capítulo anterior e o autor descreve alguns fundamentos de física quântica que ele entende serem importantes para tentar responder às questões fundamentais. Na verdade, esse capítulo descreve que o que entendemos como 'matéria' não é algo tão 'tangível' como se pode pensar e que é possível, portanto, que no nível mais elementar, a mente seja formada por outro tipo de coisa.

A realidade 

No Capítulo 7 (Isso é real?), Parnia se põe a discutir métodos ou meios pelos quais seria possível separar uma experiência real de algo imaginário. A maior novidade na discussão são as propostas de  metodologias baseadas em imagens de tomografia que permitem observar em tempo real as áreas que são ativadas no cérebro quando um indivíduo está realizando uma atividade ou simplesmente pensando em algo.  Como vimos, a maior parte das teorias ortodoxas para as NDEs parte da hipótese de que as experiências não são reais, mas alucinações. Segundo Parnia:
Isso é uma maneira bem simplista de se olhar um assunto complexo que precisa de mais esclarecimentos e explicações. O que muitos que apoiam este argumento não mencionam é que exatamente as áreas do cérebro envolvidas com alucinações estão igualmente envolvidas com muitas das experiências 'reais' e 'normais' e emoções como o amor, ódio etc. Por conseguinte, simplesmente identificar essas áreas do cérebro como aquelas envolvidas em EQM não pode nos dizer se são experiências reais ou alucinações. (Parnia,  2008, p. 166)
De outra forma: exames de tomografia do cérebro não permitem que se diferenciem experiências 'privadas' das experiências 'públicas'. Os circuitos neuronais envolvido na atividade de se contemplar uma lâmpada acesa são os mesmos de simplesmente imaginar ver uma cena com essa lâmpada acesa. Não parecem existir bases em mapeamento neuronal suficientemente seguras para se caracterizar determinadas experiências como alucinações ou experiências reais. Isso complica bastante os métodos laboratoriais de pesquisa no assunto, já que não é possível diferenciar um caso de outro e todo o assunto, por essa via, parece muito complexo. Mais uma vez estamos diante de um objeto de estudo que escapa aos métodos presentes de pesquisa considerados científicos.

A Horizon (Capítulo 8) é uma fundação criada por Parnia que tem como objetivo apoiar estudos na área de EQM. De certa forma, essa foi a solução encontrada pelo autor para dar vazão à pesquisa na área, ainda incipiente ou pouco tolerada pelo meio acadêmico convencional. Há vários projetos em andamento e é bom sempre verificarmos esse link para sabermos das novidades na fascinante área da pesquisa das experiências de quase morte. 

Finalmente, no último capítulo (9 -Implicações para o futuro), Parnia  faz um resumo do que apresentou anteriormente, traça planos para o futuro e discute as consequências para  a humanidade de uma aceitação global do pós-vida a partir de evidências fornecidas pelas EQMs. Não seria apenas uma nova ciência, mas uma revolução como nunca antes vista:
Isto levaria a um estudo objetivo do que comumente é considerado assunto religioso e filosófico e, portanto, terminando muitos desacordos e levando, por conseguinte, a uma sociedade muito mais tolerante. Da mesma forma que a ciência revolucionou nossa compreensão do mundo externo, ela também poderia revolucionar nosso entendimento do mundo subjetivo dentro de nós.
De certa forma, isso já está acontecendo. Em síntese, o livro de Parnia é bastante elucidativo, trazendo discussões e contra argumentos ao ponto de vista cético padrão de considerar as EQM como meras alucinações. Certamente, as experiências de quase morte são uma via alternativa através da qual podemos acessar parte da realidade maior em que estamos envolvidos. Para a imensa maioria dos que passaram por essa experiência, hoje não há mais dúvidas: elas existem e são reais.

(*) A citação está no livro 'A República', Livro X, última parte onde Platão narra a fábula de Er. Parnia não fornece a referência completa. Ver o blog  Rotas Filosóficas.
  
Dados sobre o livro

O que acontece quando morremos - Um estudo sobre a Vida após a Morte.
Autor: Sam Parnia (2008).
Ed. nacional com tradução de Emanuel Mendes Rodrigues.
ISBN: 978-85-7635-360-7
Número de páginas: 246.
Editora Larrouse, São Paulo, SP.

Vocabulário

NDE (inglês) - 'Near Death Experiences'  ou experiências de quase morte (EQM em português) são relatos de vítimas de coma ou 'instâncias de quase morte' (em geral sobreviventes de paradas cardíacas) que mantem entre si determinadas características comuns. Dentre as mais marcantes está a de separação do corpo, sensação de grande paz, presença de pessoas já falecidas, visualização de uma luz ou tunel de onde retornam para continuar a presente existência. A experiência é descrita como não traumática e de grande impacto na vida do paciente. 
NDEr (inglês): É o indivíduo que passa por uma EQM.

Outros artigos de Parnia e colaboradores (ver www.horizonresearch.org)
  • Parnia S, Fenwick P, Near Death Experiences in Cardiac Arrest: Visions of a dying brain or visions of a new science of consiousness. Resuscitation 2002 Jan 52, 5-11;
  • Parnia S, Fenwick P: Do reports of consciousness during cardiac arrest hold the key to discovering the nature of consciousness? Medical Hypothesis 2007;
  • Parnia S, Waller D, Yeates R, Fenwick P, A qualitative and quantitative study of the incidence, features and aetiology of near death experiences in cardiac arrest survivors. Resuscitation, Feb 2001 48, 149-156.
Outros links

Outra página de referência (em inglês) é a da Near Death Experience Research Foundation.

3 comentários:

  1. Ademir, este é um link para o "Mito de Er" narrado por Platão: http://rotasfilosoficas.blogs.sapo.pt/970.html

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  2. Alexandre

    Obrigado. Eu achei esse mito depois de procurar em 'A Republica' inteiro e estava lá no final. É uma pena que Parnia não tenha passado a referência. Com sua dica fica muito mais fácil. Vou acrescentá-la no link do artigo.

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  3. Recordo-me que Alice no País da Maravilhas rodava ou corria e não saia do mesmo lugar. É assim que vejo esse trabalho do Sam Parnia - tentando negar ou comprovar se o fenômeno é real ou fantasia da mente, e forçando um "teoria" que comprove que o nosso limite ainda são nossos neurônios. Os testes de UTI que eu já conhecia são anedotários. Já se conhece parte da dinâmica de "estar do outro lado " na NDE ou nas projeções conscientes , nos sonhos lúcidos e até mesmo nas "alucinações " da Narcolepsia - e nas milhares de descrições do fenômeno de Clarividência que a literatura espírita é farta. Sabe-se que ao se transitar por esse "outro mundo" o fazemos num outro "ambiente" que tanto pode ser no presente, no passado, no futuro e nos espaços alternativos que nos cercam - Chico Xavier nos dizia que são páginas de um livro que podemos abrir essa o aquela para fazer a leitura correspondente - sou grato ao Alexandre Fonseca e ao Ademir Xavier por essa leitura

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