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22 de dezembro de 2012

2/3 - Análise de 'A Teoria Corpuscular do Espírito' e 'Psi quântico' (por Alexandre F. da Fonseca)

"Se é certo que a utopia da véspera se torna muitas vezes a verdade do dia seguinte, deixemos que o dia seguinte realize a utopia da véspera, porém não atravanquemos a Doutrina de princípios que possam ser considerados quiméricos e fazer que a repilam os homens positivos." (Allan Kardec, Obras Póstumas, Constituição do Espiritismo, "Dos Cismas")


Continuação do post anterior de Alexandre F. da Fonseca. 
4) Outra  falha de fundamentos é não discutir e descrever como tais quanta de percepção-memória e inteligência levam às propriedades dos seres vivos, ou mesmo do Espírito. Ter mais intelectons significa ter mais inteligência? Ter mais perceptons significa ter mais memória e percepção? Se o Espiritismo ensina que na medida que evoluímos, nosso perispírito se torna mais e mais sutil, nos tornando menos ligados à matéria, então deixamos de ter intelectons e perceptons, perdendo assim inteligência e percepção-memória? Na pág. 68, o autor afirma que 
os atributos do espírito resultarão, dessa forma, das características de seus componentes, número, disposição e combinação, tal como observamos no caso da matéria...”. 
Essa afirmação de Hernani deixa claro um caráter reducionista de sua proposta. Se “tal como observamos no caso da matéria” o que determina a forma, componentes, número e disposição das partículas nos átomos são forças cegas entre essas partículas, quer dizer que os atributos de inteligência e percepção-memória do espírito dependerão também de forças cegas? Os espiritualistas não criticam os materialistas por dizerem que a inteligência e o sentimento decorrem de componentes, disposição e número de partículas materiais que formam o cérebro e o corpo físico? Em que a teoria de Hernani difere das teorias materialistas? Esse tipo de contradição conceitual depõe contra a consistência interna da teoria. A intenção do autor foi boa mas, infelizmente, a forma de abordagem teórica é inconsistente com o Espiritismo. 
5) Outro ponto fundamental da teoria de Hernani é a definição da partícula bíon. Sobre o bíon, é dito na pág. 69 que 
O Bíon é a partícula correspondente à vida em si mesma, independente de prévia organização. É o agente vivificador da matéria.
Essa afirmação contradiz a definição feita pelo próprio autor, na pág. 66 de [1], do conceito de vida como sendo “representada pela coordenação das atividades físicas, químicas e biológicas dos seres chamados vivos.” Essa definição de vida é puramente material e decorreu de observações do comportamento dos seres vivos. Ele afirma, porém, que sua causa (o bíon) não é material. Isso mostra que os conceitos estão definidos de forma incongruente entre si. 
Problemas com conceitos de Física
As falhas apontadas acima decorrem de inconsistências internas da teoria com ela mesma ou com conceitos bem estabelecidos pelo Espiritismo. Porém, há também erros de Física, indicando que o autor aplicou alguns conceitos de maneira errada na teoria.
Na pág. 70, na seção intitulada “O “Bíon” e o “Campo Biomagnético” ou “Campo Vital”, do cap. II de [1], ao explicar ao leitor sobre o surgimento do campo magnético, o autor faz a seguinte afirmativa: 
“A direção e o sentido deste campo são tais, que sua reação sobre a própria carga indutora tende a impedí-la de deslocar-se livremente.”
O autor faz referência à chamada lei de Biot e Savart, para a qual o campo magnético gerado pelo movimento de uma carga elétrica não afeta ela mesma [6]. Talvez a influência a que o autor se refere seja a chamada lei de Lenz [6], que diz que quando o fluxo de um campo magnético através de uma espira ou circuito fechado é feito variar, uma corrente ou movimento de cargas é induzido na espira de tal modo a gerar um campo magnético que se oponha à variação desse fluxo.

Outra possibilidade seria o efeito de irradiação eletromagnética de cargas aceleradas. Isso resultaria em perda de energia cinética, o que causaria alteração na trajetória da carga. Porém,  isso seria mais um problema para a teoria de Hernani e não solução, pois o destino de uma carga elétrica em órbita circular em torno do núcleo seria cair sobre ele por causa da perda de energia devido à irradiação.  Por essa  razão, não se utiliza análise clássica para o magnetismo orbital dos elétrons. Porém, como não há no texto do autor  nenhuma análise ou indicação mais segura sobre isso, a impressão que temos é que o autor tinha dificuldades com conceitos mais básicos de física.

Para a definição dos quanta de vida, percepção-memória-inteligência, a teoria atômica serviu de inspiração à teoria de Hernani. Porém, ele não aplica a teoria quântica de momentos angulares para analisar os momentos magnéticos orbitais, sejam eles de elétrons ou bíons, nem considera o spin dos mesmos. O autor considera toda a sua análise dos campos magnéticos de “modo clássico”. Não se pode usar conceitos quânticos numa parte da teoria e ignorá-los em outra parte. Isso torna a teoria de Hernani incoerente com os princípios da Física que ele se propõe a seguir.

Nas páginas seguintes à pág. 70, o autor cita como base de argumentação para a necessidade de um campo organizador dos fenômenos biológicos, algumas referências da época como, por exemplo, comentários do Dr. Sinnott de que “A segunda lei da termodinâmica, o princípio da menor ação, é contrariado pela vida”. O que talvez Hernani não soubesse na época, e que enfraquece os pontos de apoio da sua teoria, foi o desenvolvimento da teoria da termodinâmica de sistemas fora do equilíbrio por Ilya Prigogine [7], que diz que sistemas abertos e longe do equilíbrio termodinâmico podem se auto-organizar e, portanto, são candidatos naturais para descrever sistemas biológicos (certamente sistemas vivos são abertos e longe do equilíbrio, mas nem todo sistema termodinâmico com essas características pode ser chamado de ‘vivo’). Considerar que os sistemas biológicos violam a 2ª lei da Termodinâmica é, hoje em dia, um erro conceitual.
Na seção intitulada “A Diafaneidade do Espírito”, do cap. IV de [1], na pág. 119 o autor afirma que 
As formações espirituais simples são verdadeiros átomos espirituais. Todavia as distâncias entre o núcleo e os bíons devem ser muito maiores do que as distâncias que separam os elétrons dos respectivos núcleos no átomo físico. É esta uma condição necessária para que o espírito seja mais diáfano do que a matéria. Consequentemente, a velocidade dos bíons ao redor dos núcleos vem a ser também grande, ...” (Grifos em negrito, meus).
Na explicação acima, encontramos diversos problemas de natureza física e filosófica. Primeiro, a necessidade de impor aos bíons que circulem a distâncias maiores do núcleo do que os elétrons em torno dos núcleos materiais, para explicar a diafaneidade dos Espíritos, significa que bíons e elétrons, núcleos materiais e espirituais, não possuem naturezas diferentes: seriam ambos matéria tão densa uma quanto a outra. Isso mostra a oposição da teoria de Hernani ao que ensina o Espiritismo.
Modelo planetário atômico. Continua a ser usado para ilustrar o átomo, mas é um modelo ultrapassado. Conceitos como velocidade e posição (que existem para planetas girando em torno do Sol) não existem para elétrons em torno do núcleo.
O segundo problema é de compreensão do significado do continuum espaço-tempo. De acordo com a Física [4], se a velocidade dos bíons tiver que ser maior que a velocidade dos elétrons nos átomos materiais, então ocorrerá com os átomos espirituais uma contração espacial resultante do continuum espaço-tempo, assim como ocorre com o átomo de mercúrio [8] cujos elétrons de valência são acelerados a velocidades maiores do que os elétrons de valência de outros metais, e por isso ocorre uma contração dos seus orbitais, e um enfraquecimento da força de interação entre os átomos de mercúrio, tornando-o líquido à temperatura ambiente. Como consequência disso, por se movimentar mais rápido, a trajetória do bíon em torno do núcleo espiritual será reduzida em tamanho, contradizendo a própria hipótese (colocada à mão) de que ela deve ser maior em tamanho e distância do que a dos átomos materiais. Esse é um erro de inconsistência interna que revela, no fundo, a precariedade da proposta de Hernani em explicar a diafaneidade dos Espíritos.
Na seção intitulada “Ação Mútua Entre Espírito e Matéria”, do cap. VI de [1], o autor faz o seguinte comentário: 
A vivificação da matéria depende da possibilidade de interação de dois campos. Um deles é o biomagnético, gerado pelo bíon. O outro seria o eletromagnético ... Para explicar o fenômeno, precisamos transpor algumas barreiras conceituais da própria Física, admitindo-se que o movimento dos elétrons, quando cobrindo uma superfície fechada em torno do núcleo, possa desenvolver um momento magnético perpendicular, ao mesmo tempo, aos três eixos cartesianos que definem um espaço físico. Este momento magnético originaria um campo atuando no hiperespaço. A presença de qualquer substância material suscitaria, como conseqüência, a manifestação deste tipo de campo orientado para uma das direções do hiperespaço.” (Grifos em negrito, meus).
Aqui, há um erro que consideramos ser grave dentro dos métodos de trabalho da Física. Não se pode propor hipóteses que extrapolem conceitos bem estabelecidos sem bases experimentais! A importância da hipótese é diretamente proporcional à necessidade de respaldo experimental. Na ausência desta, a hipótese não tem valor científico, nem apoio da Física. Não se pode “transpor barreiras conceituais da Física” sem realizar um trabalho de demonstração experimental que sustente essa “transposição”. Exemplos: a proposta de quantização de Planck, além de bem explicada, permitiu ajustar com precisão matemática os dados experimentais para a radiação de um corpo negro [4]; a proposta de quantização da radiação eletromagnética permitiu Einstein explicar de modo muito simples o efeito fotoelétrico [4].
Há, porém, outro erro de natureza fundamental a respeito do significado do continuum espaço-tempo. A quarta dimensão não sendo espacial, nenhum campo magnético pode estar orientado na direção do tempo. Logo, essa proposta também é incoerente com a Física.
Divergências no conceito de alma
No fim do cap. VII de [1], o autor analisa o conceito de alma segundo sua teoria. Na seção intitulada “A Alma”, na pág. 291, ele diz:
No caso do espírito encarnado, pode assinalar-se, do mesmo modo, a presença de um fluxo biomagnético atravessando o soma físico. Suas linhas de força estão dispostas de acordo com as vibrações do campo, as quais apresentam os delineamentos característicos dos tecidos orgânicos. Todas as minúcias das configurações moleculares protoplásmicas, celulares, fisiológicas, etc., acham-se estampadas no espectro biomagnético, formando uma duplicata biomagnética do corpo carnal. (...) Destruído o equipamento fisiológico, [...], cessam as manifestações do espectro. A duplicata biomagnética deixa de agir. A Teoria Corpuscular do Espírito reconhece como a alma a referida duplicata biomagnética acima descrita.” (Grifos em negrito, meus).
Esse conceito de alma da teoria de Hernani deixa claro como sua teoria está em desacordo com o Espiritismo. A alma, de acordo com o Espiritismo (itens 10 a 14 de O Que É O Espiritismo [9]), é o “princípio inteligente em que residem o pensamento, a vontade e o senso moral”. Logo, a alma não pode consistir de um campo biomagnético, pois campos magnéticos, segundo a Física, são efeitos da presença e movimento de cargas elétricas. O conceito de alma do Espiritismo está relacionado com o elemento inteligente do universo, que é aquilo que pensa e tem vontade e, portanto, não pode ser efeito da distribuição espacial e temporal de partículas, mesmo que espirituais.
A discrepância entre a teoria de Hernani e o Espiritismo fica mais clara com as afirmativas contidas na pág. 292, de que a alma 
surge juntamente com o corpo” e “se dissipa à medida que os veículos somáticos se desagregam;”. 
Vê-se daí que essa teoria, além de se basear em premissas cientificamente erradas, destoa em suas consequências dos conceitos espíritas. 

Ilustração de uma 'estrutura do hiperespaço' usando as ideias de Hernani G. Andrade. O eixo vertical é o tempo.
Continua no próximo e último post com análise de outra obra de Hernani G. Andrade: 'O Psi Quântico'.
Referências

[1] H. G. Andrade, A Teoria Corpuscular do Espírito, re-impresso pela Editora DIDIER, Votuporanga, (2007).
[2] H. G. Andrade, Psi Quântico, 3ª edição, Editora Pensamento LTDA, São Paulo (1991).
[3] S. S. Chibeni, “O Espiritismo em seu tríplice aspecto: científico, filosófico e religioso”, Reformador, Agosto, p. 37 (2003); Setembro, p. 38 (2003); Outubro, p. 39 (2003).
[4] R. Eisberg e R. Resnick, Física Quântica – Átomos, Moléculas, Sólidos, Núcleos e Partículas, Editora Campus, 21a. Reimpressão (1979).
[5] A. Kardec, O Livro dos Espíritos, FEB, 1ª. edição, Rio de Janeiro (2006).
[6] D. Halliday, R. Resnick e J. Walker, Fundamentos da Física – Volume 3 – Eletromagnetismo, Editora LTC, 8a. Edição (2009).
[7] I. Prigogine, Introduction to Thermodynamics of Irreversible Processes. 3rd edition, Wiley Interscience, New York (1967).
[8] L. J. Norrby, "Why is mercury liquid? Or, why do relativistic effects not get into chemistry textbooks?" Journal of Chemical Education 68, 110 (1991).
[9] A. Kardec, O Que É O Espiritismo, Ed. FEB, 1ª Edição de bolso, Rio de Janeiro (2008). 

Links

1o. Post: Análise de 'A Teoria Corpuscular do Espírito e Psi Quântico' (Alexandre F. da Fonseca)

15 de dezembro de 2012

1/3 - Análise de 'A Teoria Corpuscular do Espírito' e 'Psi quântico' (por Alexandre F. da Fonseca)


O movimento espírita tem demonstrado enorme interesse no desenvolvimento da Ciência e, em particular, nos avanços da Física moderna. Idéias como ligação não-local, estar em dois ou mais lugares ao mesmo tempo, ou não estar em nenhum lugar antes de uma medida, influência do observador etc têm despertado a imaginação de leitores leigos em Física (e mesmo em alguns não tão leigos assim) com relação às questões espirituais. E, em função do status de verdade que a Ciência goza, capaz de revelar e orientar o progresso intelectual da humanidade, desenvolveu-se um fenômeno curioso dentro das diversas religiões que é o de buscar apoio nas Ciências modernas para doutrinas e teorias de natureza espiritualista. Como não podia deixar de ser, o movimento espírita também tem aderido a essa tendência e há décadas vemos obras que pretendem unir conceitos da Ciência com o Espiritismo, na intenção (boa, diga-se de passagem) de promover ou valorizar o aspecto científico do mesmo.  

Porém, boa intenção não é o suficiente para mostrar que um conhecimento novo corresponde de fato à realidade e mesmo na boa fé, pode-se prejudicar mais do que ajudar. Se o interesse é valorizar o aspecto científico do Espiritismo, importante se torna questionar se de fato idéias, teorias, doutrinas, práticas que se dizem baseadas na Ciência e que se propõem no meio espírita são de fato tão dignas de mérito científico quanto qualquer ideia, teoria ou prática novas que surgem dentro do contexto puramente acadêmico ou científico.

O propósito desta série de posts é, portanto, trabalhar um aspecto pouco presente no movimento espírita: auto-crítica de suas teorias científicas. E, se o assunto é falar de ciência, lembramos que uma das formas da Ciência se desenvolver é através de auto-críticas construtivas dos trabalhos anteriores, onde se procura aprimorar e corrigir teorias e experimentos anteriores para obter resultados mais precisos ou mesmo prever e descobrir novos fenômenos.

Em um post recente, foram apresentados alguns argumentos sobre a forma equilibrada e cristã que o espírita tem como dever na hora de realizar uma análise crítica do que dizem os adversários do Espiritismo. Adotamos isso na análise que se segue de uma das teorias científicas mais comentadas no meio espírita, muito mais por méritos pessoais do seu autor, do que pela própria teoria. Estamos falando das teorias A Teoria Corpuscular do Espírito [1] e Psi Quântico [2] de Hernani Guimarães Andrade (1913-2003). Conhecido confrade espírita pela sua dedicação à pesquisa e divulgação no Brasil e no mundo dos fenômenos psíquicos e, mais ainda, pela sua personalidade fraterna e amável, Hernani escreveu duas obras de natureza teórica a respeito da estrutura da matéria que comporia o Espírito e/ou a matéria psi. Assim como se faz em qualquer ciência madura, vamos analisá-las sob a luz da ciência e da razão. Em uma série de três posts, apresentaremos um resumo dos pontos críticos presentes nas teorias acima. Um trabalho mais detalhado sobre o assunto está sendo preparado para futura apresentação no próximo encontro da LIHPE.

Nosso objetivo principal é apresentar uma análise aprofundada das teorias de Hernani de acordo com conceitos bem estabelecidos da Física. As seguintes questões nortearão a análise: i) teriam as teorias de Hernani, por utilizarem conceitos da Física, sanção da mesma? ii) Apresentariam elas o que chamamos de auto-consistência, isto é, ausência de contradições entre si ou com outros conceitos da Física? Analisaremos alguns conceitos das obras das Refs. [1] e [2] da mesma forma como novas teorias e conceitos são analisados dentro da área da Física.

Pontos falhos das bases da A Teoria Corpuscular do Espírito

1. Sobre a necessidade de uma teoria com base na Física

Uma justifica para o desenvolvimento de uma teoria corpuscular do espírito foi dada por Hernani na pág. 44 da edição de 2007 da obra [1](1), cap. I, seção “O Espiritismo e as Ciências”:  
No entanto o Espiritismo ressente-se da falta de teorias que lhe facultem avanço seguro na estrada da pesquisa metódica de laboratório.” 
Esse comentário é curioso, pois que o Espiritismo é uma doutrina ou teoria fenomenológica, isto é, ligada aos fatos e fenômenos e, portanto, ela naturalmente contém em si orientações para pesquisas de natureza experimental, metódica e em laboratório. Veja-se para isso a análise do artigo da Ref. [3] e o post “Sobre teorias fenomenológicas e construtivas .
2. A natureza corpuscular do espírito

Sob esse título, numa das seções do cap. II intitulado “As Bases da Teoria”, Hernani afirma na pág. 61 que
 “Os mesmos argumentos lógicos que levaram a admitir-se a descontinuidade da matéria como necessária e imprescindível são aplicáveis à noção que hoje temos do espírito.
Essa afirmação decorre de uma análise feita por Hernani em páginas anteriores do chamado paradoxo de Zenon de Eléia, como razão suficiente para concluir que a matéria deve ser descontínua. Há dois erros nessa consideração. Primeiro que o paradoxo de Zenon é facilmente resolvido se considerarmos que o produto de uma grandeza que tende a zero por outra que tende ao infinito, pode ter resultado finito. Ou que a soma de um número infinito de termos que individualmente tendem a zero, pode ter resultado finito. Isso, por exemplo, permite definir o conceito de uma integral em Cálculo como o limite da soma de infinitos termos que tendem a zero. Isso resolve o paradoxo de Zenon de Eléia. Outro erro é basear a hipótese de descontinuidade da matéria nesse paradoxo. A Física clássica trabalhou (e ainda trabalha) com o conceito de continuidade da matéria muito bem. Muitos fenômenos materiais na escala macroscópica são muito bem descritos por teorias que consideram um material como sendo formado por elementos de volume maciços e justapostos. A idéia de que a matéria era formada por partículas discretas só surgiu depois de experimentos como os realizados por Rutherford e sua equipe onde feixes de partículas alfa (que são núcleos de átomos de hélio) foram arremessados contra uma folha fina de ouro. Os resultados mostraram que a matéria não podia ser formada de átomos de acordo com um modelo conhecido como pudim de ameixas [4] em que os elétrons se distribuiam uniformemente em uma esfera positiva de cargas do tamanho do átomo. Para explicar seus experimentos, Rutherford propôs um modelo do tipo planetário para o átomo, isto é, em que os elétrons giravam em torno de um núcleo bem pequeno assim como os planetas giram em torno do sol.
Diagrama esquemático do experimento de Rutherford.
3. Quanta de vida, de percepção e inteligência
Na seção “Componentes do Átomo Espiritual” do cap. II de [1], Hernani apresenta a definição de três novas partículas (pág. 67): “quantum de vida; quantum de percepção-memória; e quantum de inteligência.”. Na página anterior, Hernani argumenta que essas três características, vida, percepção-memória e inteligência são parte integrante e presente nos seres vivos. Na página seguinte, ele propõe a existência das partículas, bíon, percepton e intelecton para representarem esses quanta, respectivamente.
A primeira observação que fazemos é notar que a teoria acima não seguiu o esquema de desenvolvimento das teorias atômicas da Física. As falhas dessa proposta são as seguintes:
1) Em Física, até hoje jamais se postulou a existência de partículas relacionadas com o comportamento de sistemas complexos. Seres vivos, para a Física atual, são sistemas abertos e longe do equilíbrio termodinâmico apresentando, assim, comportamento rico e complexo. Apesar de bem intencionada, a proposta de que as características de vida, de percepção-memória e inteligência decorram de partículas individuais não soluciona de fato o problema de se descobrir qual é a origem da vida. Filosoficamente alguém pode perguntar mas por quê essas partículas se comportam assim? A única forma de aceitar essa proposição seria demonstrar experimentalmente a existência de tais partículas, e com as tais propriedades especiais, da mesma forma como, por exemplo, a Ciência material, hoje, busca medir a existência do Bóson Higgs. Por mais sensata seja a proposta do Bóson de Higgs para explicar a massa de todas as partículas de acordo com o chamado Modelo Padrão da Física de Partículas, sem a medida direta da sua existência, a teoria não é considerada 100% correta. A existência da massa das diversas partículas não serve de comprovação para a existência do bóson de Higgs. Essa falha, infelizmente, é cometida na Teoria Corpuscular do Espírito. A forma de demonstrar a existência de bíons, intelectons e perceptons foi proposta ser através da análise do comportamento complexo dos seres vivos. Na verdade, Hernani não percebeu que não se pode usar um fenômeno complexo para provar um postulado baseado no próprio fenômeno complexo. 

A Ciência ainda não sabe descrever de modo completo o comportamento biológico e menos ainda psicológico dos seres. Mas isso não sugere que a solução está na definição simples da existência de partículas que tenham as funções que não sabemos descrever ainda! Em Ciência, partimos de poucas hipóteses fundamentais e com elas tentamos descobrir o comportamento de uma gama enorme de sistemas e materiais. O sucesso de novas teorias depende disso.

Tubo de raios catódicos.
2) Que na Física a descoberta das partículas subatômicas decorreram de experimentos como, por exemplo, o de J. J. Thomson com tubos de raios catódicos, que permitiram descobrir os elétrons. Que experimentos poderiam demonstrar a existência de bíons, perceptons e intelectons individualmente? Que experimentos poderiam demonstrar que perceptons estão associados à percepção-memória e intelectons estão associados a inteligência nos seres vivos? Foram experimentos como o de Thomson que mostraram que a matéria é formada por partículas subatômicas, e não os fenômenos complexos em escala macroscópica! Além disso, ao elétron e ao próton não foram associados nada mais que propriedades de possuírem determinado valor de carga elétrica e massa que, por sua vez, foram medidas por experimentos. Já as propriedades complexas como energia de coesão, condutividades elétricas e térmicas, elasticidade e outras, são obtidas sem a necessidade de definir um quantum de cada uma dessas propriedades.

3) Outra falha dos fundamentos da teoria de Hernani consiste em não definir o significado dos quanta apresentados por ele. Por exemplo, ele diz na pág. 67 que

Esta expressão – quantum – é aqui tomada como constituindo a menor fração possível, tendo, porém, um valor constante, fixo e determinado para cada componente-tipo.” 
Perguntamos o que entender por “menor fração possível”?  Fração possível do quê? Valor constante e fixo de que quantidade? Em termos de quê? Em Física Quântica, um quantum é uma quantidade fixa numérica e bem definida [4]. Quando Planck propôs a quantização das trocas de energia entre radiação e matéria, ele analisou o espectro de radiação do corpo negro em termos de quantidades de energia proporcionais a kBT [4], onde kB é a constante de Boltzmann e T a temperatura do corpo. Quando Einstein propôs que a radiação era composta de partículas de luz, ou fótons, ele propôs uma forma quantitativa de mensurar a quantidade de energia de um fóton [4]. Mas na teoria de Hernani, quanto vale um quantum de percepção ou inteligência? Cremos poder responder essa última pergunta afirmando que não sendo material o objeto de estudo da teoria, que é o espírito, não se pode tratá-la de maneira material ou análoga à matéria. Como podemos ler nos seguintes comentários de Kardec após a questão 28 de O Livro dos Espíritos [5]:
Um fato patente domina todas as hipóteses: vemos matéria destituída de inteligência e vemos um princípio inteligente que independe da matéria. (...) Elas se nos mostram como sendo distintas; daí o considerarmo-las formando os dois princípios constitutivos do Universo. (...).(Grifos em negrito, meus).
Esse é um importante detalhe que precisa ser levado em conta em qualquer teoria para a interação espírito-matéria. Concluímos dessa parte da análise que os fundamentos da teoria de Hernani não possuem respaldo experimental direto.
No próximo post, continuaremos a análise dos fundamentos da Teoria Corpúscular do Espírito. No terceiro post realizaremos alguns comentários sobre a teoria do Psi Quântico [2].

Referências

[1] H. G. Andrade, A Teoria Corpuscular do Espírito, re-impresso pela Editora DIDIER, Votuporanga,  (2007).
[2] H. G. Andrade, Psi Quântico - Uma extensão dos conceitos quânticos e atômicos à ideia do Espirito, 3ª edição, Editora Pensamento LTDA, São Paulo (1991).
[3] S. S. Chibeni, “O Espiritismo em seu tríplice aspecto: científico, filosófico e religioso”, Reformador Agosto, p. 37 (2003); Setembro, p. 38 (2003); Outubro, p. 39 (2003).
[4] R. Eisberg e R. Resnick, Física Quântica – Átomos, Moléculas, Sólidos, Núcleos e Partículas, Editora Campus, 21a. Reimpressão (1979).
[5] A. Kardec, O Livro dos Espíritos, FEB, 1ª. edição, Rio de Janeiro (2006).

Notas

(1) As páginas citadas aqui se referem às edições usadas como referência. O leitor deve buscar procurar as páginas corretas nas edições anteriores ou posteriores

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