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1 de dezembro de 2022

Bens, direitos, deveres e obrigações da alma


Nada do que se expressa sobre Jesus nos Evangelhos se refere a coisas terrenas​, ​mas a um conjunto de “negócios espirituais” da alma, seus direitos e obrigações. Emmanuel referiu-se a isso quando comentou em “Vê como vives” [1]:
Com a precisa madureza do raciocínio, compreenderá o homem que toda a sua existência é um grande conjunto de negócios espirituais e que a vida, em si, não passa de ato religioso permanente, com vistas aos deveres divinos que nos prendem a Deus.
Guardados os inúmeros problemas de tradução, textos apócrifos e interpolações mal-intencionadas feitas ao longo do tempo ​que modificaram os Evangelhos originais, é a única interpretação possível para muitos dos ensinos de Jesus no Novo Testamento.

Entretanto, nunca foi intenção de Jesus “reformar” o sistema legal de seu tempo, que tinha regulamento próprio, pois tudo o que Jesus ensinou dizia respeito aos interesses da alma. Assim, por trazer uma nova revelação, seus ensinamentos frequentemente usavam recursos alegóricos. Esses recursos se mostraram eficientes, pois os ensinos morais atravessaram quase que intactos as inumeras versões do Novo Testamento. Neste post, tecemos algumas observações sobre parte da revelação da Justiça Divina trazido por Jesus conforme se pode ler em Mateus 5.

Interpretação espírita de alguns ensinamentos em Mateus 5.

Atenção: para unificar as referências aos textos do Evangelho, em complementação aos versículos extraídos da versão "Almeida revisada", citamos alguns termos equivalentes conforme versão em latim da Vulgata: http://www.drbo.org/lvb/chapter/47005.htm
Qualquer, pois, que violar um destes mandamentos, por menor que seja, e assim ensinar aos homens, será chamado o menor no reino dos céus; aquele, porém, que os cumprir e ensinar será chamado grande no reino dos céus. (Mateus 5:19)
A vida futura da alma é o “reino dos céus” não como lugar, mas como conjunto de bens e direitos a que o Espírito tem acesso após muitos estágios de sua vida encarnada.

Os bens ou direitos ​resultam do cumprimento de obrigações da alma que também são de natureza espiritual. Assim, o “será chamado o menor no reino dos céus” (minimus vocabitur in regno caelorum) ​é um estado possível da alma na vida futura. É “situação processual” perante a Lei Maior de onde se derivam os bens a que tem direito, bem como seus deveres e obrigações.

Com o tempo mudam os interesses e as ações da alma. Seus direitos e deveres precisam refletir suas decisões, conforme ela se aproximar ou se afastar da Lei.  Assim, os que “violam um destes mandamentos, por menor que seja” (qui ergo solverit unum de mandatis istis minimis) e “assim ensinam aos homens” (et docuerit sic homines), ou seja, dão testemunho do erro, são rebaixados por Jesus.   Por outro lado, ele eleva de posição aqueles que os cumprem e que também assim “ensinam aos homens”, ou seja, que os defendem como verdade. E “ensinar aos homens” não é mais relevante que realizar a ação: para Jesus, por óbvio, não basta simplesmente dizer o que deve ser feito, mas dar o exemplo pelo cumprimento correto da lei (qui autem fecerit et docuerit).

As Bem-aventuranças compõem a parte principal de seus mandamentos anunciados por ele no Sermão do Monte. Se a posição pode ser abaixada ou elevada é porque não há posições absolutamente eternas e imutáveis nos estágios da alma. Disso resulta que não há penas eternas igualmente.
Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no reino dos céus. (Mateus 5:20)
A justiça dos “escritas e fariseus” (scribarum et pharisaeorum) representa o sistema jurídico de todos os tempos, tomado por Jesus como comparação para a Justiça Divina. Mas, essa justiça se baseava na lei de Moises que supostamente provinha do próprio Deus. Ela é, porém, imperfeita e incompleta. E mais: não corresponde à lei Divina anunciada em parte como revelação por Jesus. Portanto, adverte que a nova justiça entre seus reais seguidores deve “exceder” àquela dos escribas (quia nisi abundaverit justitia vestra plus quam scribarum), ainda que essa última fosse considerada de origem divina. 
Ouvistes que foi dito aos antigos: Não matarás; mas qualquer que matar será réu de juízo. (Mateus 5:21)
O cânone existente proibia o assassinato (non occides). Ocorrendo esse e verificado os fatos, o indivíduo culpado se tornava “réu no juízo” (reus erit judicio) e deveria ser julgado pela justiça. Mas qual justiça? Exatamente a dos “escritas e fariseus”, ou o sistema jurídico que define tipos de punição conforme o crime realizado.
Eu, porém, vos digo que qualquer que, sem motivo, se encolerizar contra seu irmão, será réu de juízo; e qualquer que disser a seu irmão: Raca, será réu do sinédrio; e qualquer que lhe disser: Louco, será réu do fogo do inferno. (Mateus 5:22)
Assim interpôs três possíveis “penas” a três crimes que, na verdade, resume-se a um só a partir da postura mental do Espírito. O rol das “transgressões imputáveis” é expandido na lei Divina, ainda que a morte não lhes suceda como consequência.  Posteriormente, essas transgressões seriam estendidas por Jesus ao incluir o pensamento no mal

As violações enumeradas e suas penas crescem a partir de um impulso violento de oposição: a cólera “contra seu irmão” (quia omnis qui irascitur fratri suo), a agressão verbal simbolizada pelo “Raca” e, depois, “Louco” (fatue).  E, para cada uma delas, os julgamentos: 
réu no juízo (reus erit judicio), 
réu no sinédrio (reus erit concilio) e 
réu no fogo do inferno (reus erit gehennae ignis). 
Essa última comporta a tradução opcional “réu no fogo do Geena”, entendido como uma localidade na Jerusalém antiga que havia se tornado um depósito de lixo. É uma referência ao lugar “mais ínfimo” de uma cidade, não necessariamente ao “fogo eterno”, mesmo porque Jesus posteriormente esclarece como sair de lá (ver mais adiante). Quem preferir a interpretação da eternidade das penas está preparado para o “fogo eterno” ao chamar seu irmão de “Louco”? O Geena correspondia ao Vale de Hinom (Geh Ben-Hinom) na Jerusalém dos tempos de Jesus [2]. Esse era o local onde, em uma época mais remota, crianças eram sacrificadas no fogo em adoração ao deus Moloch [2][3]. 
Portanto, se trouxeres a tua oferta ao altar, e aí te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti. (Mateus 5:23)
Reconciliar-se com o próximo é a primeira obrigação antes de se buscar adorar a Deus. Importa se lembrar se “teu irmão tem alguma coisa contra ti” (quia frater tuus habet aliquid adversum te), do contrário de nada valem as oferendas. É estado da mente que pede o exame da consciência: há alguém que tenha algo contra mim? E o "opositor" não é menos que um irmão (frater) para Jesus, pois não pode haver oposição senão em razão de um desentendimento transitório. Portanto, como todos são irmãos em essência, todos deverão agir como irmãos. Mas quando? Depois da reparação.
Deixa ali diante do altar a tua oferta, e vai reconciliar-te primeiro com teu irmão e, depois, vem e apresenta a tua oferta. (Mateus 5:24)
O “deixa ali diante do altar a tua oferta” (relinque ibi munus tuum ante altare) é mera ação ritual ou mecânica se apartada do cuidado com os próprios atos e suas consequências para quem quer que seja.
Concilia-te depressa com o teu adversário, enquanto estás no caminho com ele, para que não aconteça que o adversário te entregue ao juiz, e o juiz te entregue ao oficial, e te encerrem na prisão. (Mateus 5:25)
Trecho de relevância ímpar, pois confere a alma o poder de se "livrar do julgamento" ao se reconciliar "depressa" com seu adversário. Não só implicitamente não condena o homem a qualquer eternidade penal, mas o exime de juízo verificado sua capacidade de congraçamento e concórdia com seu irmão transformado em inimigo. A alegoria é clara na imagem do "adversário que te entrega ao juiz, e o juiz te entrega ao oficial" (ne forte tradat te adversarius judici, et judex tradat te ministro).
Em verdade te digo que de maneira nenhuma sairás dali enquanto não pagares o último ceitil. (Mateus 5:26)
Porém, uma vez "condenado", tão pouco Jesus afirma ser impossível sair de lá, mas que a saída se condiciona ao pagamento do “último ceitil” (novissimum quadrantem), desde que, como visto, não se reconcilie antes com o adversário.

Portanto, não há penas eternas, mas multa calculável e exigível como pagamento pelos delitos listados, até o último “ceitil”, ou seja, “até o último centavo”. É obrigação executada de forma parcelada, em caráter compulsório embora possa ser abrandada conforme o grau de reconciliação. 
Eu, porém, vos digo, que qualquer que olhar para uma mulher com intenção impura, em seu coração, já cometeu adultério com ela. (Mateus 5:28)
O regramento da época instituía uma pena para o adultério (non moechaberis). Jesus porém anuncia que o mero pensamento de cobiça já é adultério, um princípio que pode ser estendido para todo o sentimento no mal que se abriga no coração (in corde suo). Porém, qualquer código de justiça moderno considera inimputáteis quem cometer delitos "apenas pelo pensamento". Uma vez mais os reais seguidores de Jesus devem "exceder" a justiça comum da sociedade em que vivem.
Portanto, se o teu olho direito te escandalizar, arranca-o e atira-o para longe de ti; pois te é melhor que se perca um dos teus membros do que seja todo o teu corpo lançado no inferno. (Mateus 5:29) 
E, se a tua mão direita te escandalizar, corta-a e atira-a para longe de ti, porque te é melhor que um dos teus membros se perca do que seja todo o teu corpo lançado no inferno. (Mateus 5:30)
Note-se bem: essa não é uma pena imposta sobre a alma. Do contrário, é o corpo que sofre quando Jesus afirma que "todo o teu corpo (seja) lançado no inferno" (totus corpus tuum mittatur in gehennam). É o Vale de Hinom novamente figurado como local de julgamento e pena, tal como nos delitos de Mateus 5:22. Se o corpo sofre é porque a pena é aplicada durante a vida, mas quantos crimes ficaram impunes pela finitude da vida humana se considerada como uma só? 

Sobre essas passagens, comenta Kardec [4]:
Figura enérgica esta, que seria absurda se tomada ao pé da letra, e que apenas significa que cada um deve destruir em si toda causa de escândalo, isto é, de mal; arrancar do coração todo sentimento impuro e toda tendência viciosa. Quer dizer também que, para o homem, mais vale ter cortada uma das mãos, antes que servir essa mão de instrumento para uma ação má; ficar privado da vista, antes que lhe servirem os olhos para conceber maus pensamentos. Jesus nada disse de absurdo, para quem quer que apreenda o sentido alegórico e profundo de suas palavras. Muitas coisas, entretanto, não podem ser compreendidas sem a chave que para as decifrar o Espiritismo faculta. (grifos nossos)
O vale de Hinom da Jerusalém moderna.
Foto: wikipedia.
Os judeus do tempo de Jesus tinham como lei a necessidade de  conceder divórcio (libellum repudii) à esposa abandonada, numa época em que a mulher era considerada propriedade do marido. Em oposição a isso, Jesus ensina:
Eu, porém, vos digo que qualquer que repudiar sua mulher, a não ser por causa de prostituição, faz que ela cometa adultério. (Mateus 5:32)
pelo que se aprende que o delito se inicia no repúdio (rejeição, desprezo, desamparo), muito mais sutil, e não pelo abandono. Como Jesus sabia que os homens não se casavam em regime de amor incondicional, assinalou uma exceção "a não ser por causa de prostituição" (excepta fornicationis causa). 

Até que a sociedade aprendesse o regime de reciprocidade que existe no casamento como produto de direitos e obrigações iguais entre os cônjuges, 2000 anos se passariam. Porém, a recomendação de Jesus continua intacta: o repúdio ao parceiro, sistemático e talvez diário, é produto de um estado mental que se inicia muito antes da separação.

O regramento judaico proibia o "falso testemunho" (non perjurabis), e exigia o fiel cumprimento do que fosse prometido "diante do Senhor" (autem Domino).
Outrossim, ouvistes que foi dito aos antigos: Não perjurarás, mas cumprirás os teus juramentos ao Senhor. (Mateus 5:33)
Jesus elimina a necessidade desse juramento e simplifica consideravelmente a atitude  do indivíduo diante dos outros:
Seja, porém, o vosso falar: sim, sim; não, não; porque o que passa disto provém do mal. (Mateus 5:37)
Além de condenação da mentira, é uma lição difícil aos que se consideram em "íntimo contato com Deus" e que o tomam como fiador nas ações ordinárias da vida.

O ápex da Lei Divida sintetizado por um novo mandamento.

E assim se chega ao topo dos ensinamentos de Jesus em Mateus 5:44:
Eu, porém, vos digo: amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem, (Mateus 5:44)
que é lição em flagrante oposição ao que se aprende seja desde o berço ou por instinto: "amar nosso próximo e odiar nossos inimigos" (diliges proximum tuum, et odio habebis inimicum tuum). É novísima e suprema lei áurea revelada aos homens e justificada por Jesus como esforço necessário para se "aproximar de Deus":
Sede vós, pois, perfeitos,como é perfeito o vosso Pai, que está nos céus. (Mateus 5:48)
Mas, no "sede vós, pois, perfeitos" (estote ergo vos perfecti) ninguém atinge o estado final de uma hora para outra. Por trás dessa imagem está o imenso caminho que a alma percorre até alcançar seu destino. Kardec comenta seu verdadeiro significado na medida do grau de caridade contido nas ações da alma [5]:
Não podendo o amor do próximo, levado até ao amor dos inimigos, aliar-se a nenhum defeito contrário à caridade, aquele amor é sempre, portanto, indício de maior ou menor superioridade moral, donde decorre que o grau da perfeição está na razão direta da sua extensão. 
Cumprir a lei de caridade  é suprema obrigação que a alma não se livra em sua vida maior, pois essa lei condensa em si todos os mandamentos. É um princípio universal que regula a vida do Espírito.

Em conclusão

Ao se (re)encarnar, participa-se de uma nova vida na Terra, sem que a vida real (a "vida eterna" do Espírito) deixe de exercer seus efeitos sobre a alma. 

Assim, dois regramentos sujeitam as ações: o dos homens (de natureza terrena) e a do "céu" (de natureza Divina).  No primeiro caso, extinta a vida do corpo, extintos são os bens e os direitos, deveres e obrigações. No segundo, bens, direitos, deveres e obrigações subsistem, mas de uma natureza inteiramente diversa daquela concebida pela justiça de qualquer época da Humanidade.

Em seus ensinamentos e por meios figurados, Jesus revelou parte das regras dessa nova justiça maior. Antes de tudo, ensinou ele que, para agir conforme tais princípios (ainda que de modo imperfeito), é necessário "exceder" à justiça dos homens. 

Dentre as lições está a da oposição ao "pensamento no mal". Mas, é impensável, em qualquer regramento jurídico humano, pretender punir alguém por simplesmente pensar mal de outrem. Pensar no mal, mesmo sem agir, indica natureza ainda pouco adiantada da alma (o que é verdade para a imensa maioria dos humanos!). Porém, é quando o pensamento no mal se torna ação no mal que o próximo é comprometido e se adquire uma nova obrigação. Surge então o dever de reparação, que é ensinada por Jesus na alegoria do pagamento posterior a um julgamento conforme a gravidade da pena.

Mas, sejamos claros: faz Jesus referência a um pagamento pecuniário?  Obviamente que não, antes isso é uma confirmação do caráter figurado das comparações que usou e que foram captadas quase que sem distorções pelos evangelistas. Esse pagamento é obrigação de natureza espiritual, que não se extingue, portanto, "na vida eterna" –  entendida como a própria vida maior e imperecível da alma em oposição a sua vida terrena ou encarnada – até que seja quitada em sua totalidade.

Naturalmente, só é possível compreender esse sistema de bens, direitos, deveres e obrigações transcendentes em um juízo mais dilatado da existência humana. 

Nesses termos Jesus ensinou como geralmente se sai do terrível Geena. Ao cumprir seus ensinamentos, porém, instruiu a seus seguidores como nunca entrar lá. 

Na nova revelação trazida pelo Espiritismo, o pagamento é realizado em inúmeras existências e o Geena e seu fogo são aqui mesmo na Terra. Dessa forma se regulam na eternidade da vida das almas os crimes, dos mais simples aos mais complexos e graves, já cometidos em toda a Humanidade.

Referências

[1] Emmanuel. Vinha de Luz. Psicografia de F. C. Xavier Ed. FEB, 
[2] Negev, A e Gibson, S. (2001). Hinnom (Valley of). Archaeological Encyclopedia of the Holy Land. Nova Iorque e Londres: Continuum. p. 230. ISBN 0-8264-1316-1.
[3] Wikipedia. Valley of Hinnom (Gehenna). https://en.wikipedia.org/wiki/Valley_of_Hinnom_(Gehenna)
[4] Kardec. O Evangelho segundo o Espiritismo. Capítulo VIII (Bem-aventurados os que têm puro o coração: escândalos). Parágrafo 17. Versão IPEAK: https://www.ipeak.net/pt/6479
[5] Kardec. O Evangelho segundo o Espiritismo. Capítulo VIII (Sede Perfeitos. Caracteres da perfeição). Versão IPEAK: https://www.ipeak.net/site/estudo_janela_conteudo.php?origem=6518&&idioma=1

25 de setembro de 2017

Diferenças entre a justiça humana e a divina

O julgamento e condenação de Jesus ficará para sempre como um símbolo
da imperfeição da justiça humana. Ilustração de Gustave Doré (1832-1883)
O que seria o estado de justiça? Na sociedade, corresponde a uma situação de equidade, equilíbrio ou igualdade concebíveis entre todos os atos praticados pelo indivíduo - ou grupo de indivíduos - com relação a si mesmo, com relação ao seus semelhantes, e do coletivo para com esse mesmo indivíduo ou grupo. Os atos são resultados de ações que  nascem como impulsos mentais livremente criados pelo homem, ou oriundos da aplicação da lei como síntese das crenças, valores e sentimentos de justiça do coletivo. A existência de leis e de um sentimento de justiça não implicam, porém, que esse estado de justiça exista absolutamente. Dificilmente tal estado existe em qualquer lugar sobre a Terra ainda que momentaneamente. A sociedade humana é composta de bilhões de indivíduos, de forma que uma ação sempre trará eventuais consequências negativas a qualquer um deles em certo momento de suas existências. Assim, esse estado ou condição de justiça é uma aspiração, um objetivo a ser perseguido, pois não dependente apenas de condições externas, materiais ou ambientais, mas principalmente da maneira como cada um se relaciona com seus semelhantes.

A justiça humana funciona como um processo semi-automático que deve restabelecer esse estado transitório de desequilíbrio (injustiça) por meio da aplicação de suas leis como um mecanismo de compensação. Entretanto, para que as leis sejam aplicadas é necessário validar a causa do desequilíbrio, que está no sujeito, indivíduo ou grupo responsável por ele. Dada a dificuldade e intempestividade em se remontar às causas, frequentemente uma situação de injustiça permanece por muito tempo, se não indefinidamente. Ainda que evidente, uma situação de injustiça leva tempo para ser devidamente compensada: dessa forma, a justiça humana tarda e talvez nunca se faça presente.  

A que se deve isso? A causa última da precariedade da ação da justiça humana está na privacidade dos pensamentos ou intenções dos indivíduos. Em suas diligências, a justiça humana é obrigada a inferir as intenções com base em evidências ou rastros tangíveis deixados pelos responsáveis das ações. Os pensamentos, ideias, intenções, desejos e vontades dos criminosos estão sempre ocultos porque eles são frutos da atividade mental inacessível. As circunstâncias que envolvem um crime podem ser tão complexas que até mesmo a falta de provas aparentes pode tornar-se uma evidência, e não deve passar despercebida a um bom perito. Como é impossível garantir sempre que existirão evidências ou provas de um crime, é impossível também garantir plenamente sua compensação: a justiça humana pode falhar e sua ação será parcial se o criminoso ou responsável não mais estiver entre nós.

Por maior que seja o primor do trabalho dos legisladores humanos, assim é resumidamente a justiça humana: restrita ao prescrito pelo costume e cultura de um povo, limitada em seu alcance no tempo, falível porque dependente do acesso a evidências, e cega das verdadeiras causas da injustiça. Sua força e duração depende da própria sociedade que estabelece e mantem seu funcionamento. 

Admitamos, porém, que fosse possível ter acesso completo a registros de vontades e intenções anteriores dos indivíduos. Se o pensamento e os desejos próprios de uma alma se transformassem em objetos publicamente acessíveis. Então, não somente os atos concretos ou os traços tangíveis de um crime estariam a disposição, mas suas verdadeiras causas, a ponto dos primeiros tornarem-se dispensáveis. Admitamos ainda que os perpetradores de um crime, revelados por seus pensamentos e intenções, vivessem para sempre. As circunstâncias que suscitaram as vontades e desejos, materializadas em crimes, tornando-se registros tangíveis, para sempre emoldurados nas consciências dos que os praticaram...Como se aplicaria, então, a justiça?

É frequente imaginar a justiça divina como uma versão aprimorada da justiça humana. Porém, aspectos essenciais que distinguem imensamente uma da outra são completamente ignorados pela falta de uma visão além da vida do ser. Muitas comparações feitas no passado pelas religiões encontram eco na imagem material de um Deus legislador, cópia dos humanos, sentado em um trono a observar as ações humanas e a exercer sua justiça. O Espiritismo permite vislumbrar alguns dos novos aspectos da dinâmica de "causa e efeitos" para aprimorar nossa visão sobre como funcionaria esse processo de justiça espiritual. Nele a sobrevivência do ser tem papel fundamental. O acesso a pensamentos e vontades do espírito são aspectos externos relevantes, porque a atividade mental se exterioriza e deixa rastros, tanto quanto eventuais registros da cena de um crime. Impossível será sempre a um criminoso deixar de registrar as marcas de seu crime porque ele principia exatamente nos pensamentos e desejos que levam finalmente a sua consumação.

A justiça divina funciona como um processo natural automático que tem como objetivo estabelecer um estado definitivo de equilíbrio ou justiça, cuja função última é o aprimoramento espiritual do ser. Não é função desse mecanismo natural punir, embora, para o espírito encarnado, as vicissitudes e provas pelas quais ele é obrigado a passar possam se assemelhar a punições. Porque a maioria dos espíritos encarnados está em aprimoramento, é impossível ter na Terra um estado de justiça completo, que sempre dependerá das circunstâncias e maneiras como essa sociedade terrena está organizada. A justiça divina não tem empecilhos em sua ação porque age através da própria consciência dos envolvido e dispõem de múltiplas existências como mecanismo de "ação penal".
Sem dúvida, ainda por muito tempo a lei será repressiva e castigará os culpados. Ainda não chegamos ao momento em que só a consciência da falta será o mais cruel castigo daquele que a cometeu. Mas, como vedes todos os dias, as penas se abrandam; tem-se em vista a moralização do ser; criam-se instituições para preparar a sua renovação moral; torna-se o seu abatimento útil a ele próprio e à sociedade. O criminoso não será mais a fera a ser expurgada do mundo a qualquer preço. Será a criança extraviada na qual deve ser corrigido o raciocínio falseado pelas más paixões e pela influência do meio perverso! (Instrução do Espírito do Sr. Bonnamy, pai. Revue Spirite, março de 1866. Médium:sr. Desliens.)
O aprimoramento do espírito é tão lento que a duração de uma existência humana não é suficiente para se reparar as faltas.  Assim, existe um tempo entre o cometimento de uma ação criminosa e sua correção posterior. A justiça divina aguarda condições e circunstâncias propícias para que elementos naturais ajam, restabelecendo um ordenamento que tenha sido intencionalmente perdido. Esse ordenamento não visa senão a compensação por situações que eram, elas mesmas momentâneas. Dessa forma, direitos eventualmente violados serão restabelecidos de forma transitória porque em si mesmos nunca poderiam durar para sempre. No cômputo dos ganhos do espírito, tudo que for material desaparecerá, subsistindo apenas as vivências do espírito como ganhos que aperfeiçoam a personalidade eterna.

Frequentemente diz-se que a justiça divina é infalível. De fato é como podemos inferir a partir da lei de cause e efeito. Porém, ela não existe para satisfazer a noção humana de justiça. Ela não haje para punir ou satisfazer desejos de vingança - nesse sentido nem mesmo a lei humana tem esse objetivo. Seu fim último é a educação moral do ser que não pode ser destruído. A justiça divina visa, como dissemos, o restabelecimento de uma ordem provisória, mesmo que em contexto totalmente diferente daquele em que uma falta foi gerada.  

Não se pode falar em um equivalente divino do que se concebe presentemente como "estado de justiça" meramente humano. Isso porque, com a evolução moral e intelectual do espírito, as ações praticadas nas coletividades também se aperfeiçoam a ponto de cessar qualquer condição, oportunidade ou circunstância para a injustiça. A lei de justiça entre os homens é incompleta porque deve ser substituída ou complementada por outra: a de amor e caridade. Para os homens dos dias de hoje, a meta maior é atingir um estado em cada um cumpra com suas obrigações legais, deixando de prejudicar os outros. Para a lei divina, a meta é o próprio aperfeiçoamento da justiça, o que só pode acontecer se, além de se respeitarem mutualmente, os homens passarem a se amar verdadeiramente. A aplicação da lei do amor e da caridade é ainda um capítulo recentemente aberto e, portanto, raramente reconhecido como uma necessidade dessa justiça maior. E no consiste esse amor?
Amar, no sentido profundo do termo, é o homem ser leal, probo, consciencioso, para fazer aos outros o que queira que estes lhe façam; é procurar em torno de si o sentido íntimo de todas as dores que acabrunham seus irmãos, para suavizá-las; é considerar como sua a grande família humana, porque essa família todos a encontrareis, dentro de certo período, em mundos mais adiantados; e os Espíritos que a compõem são, como vós, filhos de Deus, marcados na fronte para se elevarem ao infinito. É por isso que não podeis recusar aos vossos irmãos o que Deus liberalmente vos outorgou, porquanto, de vossa parte, muito vos alegraria que vossos irmãos vos dessem aquilo de que necessitais. Para todos os sofrimentos, tende, pois, sempre uma palavra de esperança e de apoio, a fim de que sejais inteiramente amor e justiça. (Parágrafo 10 de "A Lei de Amor", do Cap. XI de "O Evangelho Segundo o Espiritismo")
Como lei universal, a lei de amor e caridade somente ela poderá transformar o mundo e sua justiça, porque deverá transformar cada indivíduo em um agente dessa justiça maior. Sem ela jamais será possível falar em estado de justiça verdadeiro, dado que cada um sempre agirá de acordo com seus próprios interesses e, fatalmente, o outro será prejudicado. E será sempre impossível ao Estado fiscalizar todas as ações humanas pelas razões que apresentamos acima. Para a lei humana, intensões e desejos maus, se não materializados em atos, não constituem crimes. Para a lei divina,  uma má intensão, pensamento ou ato demonstra necessidade de correção sem o que é impossível ao indivíduo progredir em sua vida maior.

A incredulidade, o egoísmo e o cinismo poderão rir de nossas conclusões sobre as diferenças entre a justiça divina e a humana, considerando-as devaneios religiosos. Mas, felizmente, o incrédulo, o egoísta e o cínico morrerão milhares de vezes para renascer vezes sem conta a fim de aprender, no esquecimento, a lei de amor e caridade, que haverá de transformar a justiça humana para sempre.

Referências

A. Kardec. O Livro dos Espíritos, III Parte, Das leis morais, Cap. VIII. "Lei do progresso".
A. Kardec. O Evangelho segundo o Espiritismo. Cap. XI, Instruções dos Espíritos: "A Lei de Amor".