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1 de junho de 2016

A mediunidade de Eugênia von der Leyen

"Foi muito esquisito o que aconteceu. O sacristão continuou andando 
e passou através do vigário, como se fosse apenas uma sombra. 
Vi claramente os dois. Pouco depois, o pároco sumiu e 
nunca mais o vi." (Eugênia descrevendo seu contato com 
o pároco Schmuttermeier na igreja, p. 49 de (2))

Se se quiserem desembaraçar da obsessão de semelhantes Espíritos, 
será fácil, orando por eles. É o que sempre esquecem de fazer.
 Preferem aterrá-los com fórmulas de exorcismos, que os divertem muito.
("História de um danado", Revue Spirite, 1860)

Um de nossos leitores (1) comentou sobre um interessante livro ao ler nosso texto "Os vivos e os mortos na sociedade medieval" (3). Trata-se de "Meine Gespräche mit Armen Seelen" (2), que podemos traduzir livremente como "Minhas conversações com almas penadas". É um diário escrito pela princesa Eugenie von der Leyen und zu Hohengeroldseck (1867-1929) entre 1921 e 1929. Nascida em Munique, Eugênia vivera praticamente enclausurada em vários castelos de sua família (Fig. 1) na região de Landsberg na Baviera. De formação fervorosamente católica, Eugênia ou "Eschi" compôs, sob sugestão de seu confessor, relatos periódicos em que atestou "visões" e conversas com falecidos. Obviamente, o círculo social onde Eugênia viveu jamais permitiria qualquer outra interpretação para suas "visões" do que o contato direto com as "almas penadas" do purgatório, o que possibilitou a sobrevivência de seus escritos, confiados totalmente a seu confessor.

Comentamos alguns trechos de seu diário que foi publicado e proibido na Alemanha de Hitler. Citações a essa obra foram avançados por Hermínio de Miranda em seu livro "A reinvenção da morte" (4). Consideramos relevante seus escritos, pois referem-se a uma descrição fora do contexto do conhecimento espírita, o que atesta a universalidade desses mesmos ensinos. Trata-se também de uma ideia interessante, que pode ser adotada por médiuns de variadas sensibilidades: a de se escrever a impressão do fenômeno até suas menores particularidades. 

Alguns relatos

Os relatos de Eugênia parecem ser autênticos, uma vez que a médium nunca mencionou sua ocorrência em vida. Conforme atesta seu confessor:
Eu conheci a vidente durante seus últimos doze anos de vida; todos os dias tinha conhecimento de seus encontros com almas. A meu conselho, ela anotava o que via num diário. Nem ela e, no início, nem eu, tivemos a intenção de publicá-lo... A vidente levava uma vida santa. Era de uma piedade autêntica, humilde como São Francisco, zelosa na prática do bem e desmedidamente generosa: sempre prestativa e pronta a renunciar à própria vontade, disposta aos maiores sacrifícios, querida por Deus e por todos que a cercavam. Quem a conhecia, venerava-a. Jamais desejou atrair a atenção de quem quer que fosse. Tinha um talento especial para prestar favores e proporcionar surpresas agradáveis aos outros. O caráter da princesa é a mais sólida garantia de que merece crédito. Declaro, sob juramento, que a aconselhei a anotar, clara e integralmente, suas experiências reais, mas nunca, e em parte alguma, lhe sugeri quaisquer opiniões minhas. (p. 41)
Fig. 1 Schloss Unterdieβen, onde Eugênia viveu
a partir de 1925. 
A julgar por suas descrições, o convívio de Eugênia com os desencarnados era constante, mas limitado à visão e audição. Seu diário traz exclusivamente contatos com desencarnados. Poucos, porém, chegavam a responder seus questionamentos (todos os grifos são meus):
Cinco horas da tarde. Vi no jardim, entre duas árvores, uma freira. Parecia estar me esperando. Pensei tratar-se de uma velha conhecida e apressei-me a ir ao seu encontro. De repente, ela desapareceu sem deixar vestígios. (p. 45).
24 de fevereiro — Às quatro da manhã acordo e acendo a luz. Junto à minha cama está Crescência e, a seu lado, aquela desconhecida. Perguntei: “Crescência, querida, donde vens?” — “Do espaço intermediário.” — “Como me encontraste?” Ela fez um gesto como para dizer que veio pelo ar. (p. 52)
23 de março — De noite. Outra vez aquela gente. Dezesseis pessoas. Demoraram longo tempo. Cinco deles eu conheço: Viktor, Maria M..., Perpétua R..., aquele sapateiro que vivia dizendo: “Ai, meu Deus!” , Baptista B...; perguntei-lhes: “O que querem vocês?” Nenhuma resposta. Então eu disse: “Vamos rezar por vocês. Não precisam voltar mais.” Aí, diz o Viktor: "Temos de vir!” “Quem o quer?”, perguntei. Não responderam. Ficaram mais um pouco; todos cravaram os olhos em mim, e se foram. Aparecem noite após noite, mas não posso fazer nada; rezo e depois de pouco tempo, todos eles se retiram. (p. 54)
A primeira citação mostra um fenômeno bastante comum em  sua narrativa: o desaparecimento repentino de imagens de pessoas que Eugênia aprende a distinguir das "pessoas de carne e osso". Isso não acontece em um ambiente reservado (e nem sob invocação, o que seria inaceitável para Eugênia), mas a qualquer horário, que ela prefere seja de dia. Na segunda descrição, a médium recebe uma resposta "Do espaço intermediário" e o Espírito afirma que veio pelo ar. Na terceira citação, Eugênia quer saber porque almas do purgatório a procuram. A resposta de um Espírito chamado Viktor é "temos que vir". Eugênia também descreve a presença de dezesseis Espíritos em seu quarto, que tinha, segundo os editores de (2), cinco metros quadrados!

Apesar de seu caráter católico fervoroso, não existem dúvidas em Eugênia de que ela está, quase sempre, cercadas de "almas em sofrimento", Ou seja, ela jamais interpreta o que vê como uma manifestação "do demônio", opinião que é compartilhada por seu confessor. O fenômeno é espontâneo e intermitente. A médium não tem controle dele, embora reconheça que, em algumas situações, perdeu contato com as almas:
Durante alguns dias, sempre à noite, tive febre. Não conseguia conciliar o sono. Nessas ocasiões, nada via e nada escutava. Agora que estou boa, parece que voltam. (p. 55, grifos meus)
A que se deve isso? A mediunidade, segundo Kardec, encontra-se fundada na estrutura do organismo:
79. A faculdade mediúnica é uma propriedade do organismo e não depende das qualidades morais do médium; ela se nos mostra desenvolvida, tanto nos mais dignos, como nos mais indignos. Não se dá, porém, o mesmo com a preferência que os Espíritos bons dão ao médium. ("O que é o Espiritismo?" Cap. II: qualidade dos médiuns.)
Explica-se assim porque a sensibilidade mediúnica pode se enfraquecer durante as enfermidades  do corpo físico do médium.

Um fato curioso sobre a "sensibilidade" de animais (4b) também é relatado por Eugênia:
Vi sentada no cercado de galinhas aquela mulher. Seu jeito é sempre amável. Mas ela não responde. Tendo ido ao galinheiro, pude observá-la bem. Um gato veio andando em direção a ela. Ao enxergá-la, deu um pulo, assustado, para o lado. Senti-me feliz por constatar que, ao menos, o gato vê o que eu vejo. (p. 60)
Mas, para onde iriam as "almas" que Eugênia ajuda? Lemos o seguinte diálogo entre a médium e uma delas:
20 de junho — Estando eu para me flagelar por Weiss, apareceu ele, ao meu lado, com uma expressão feliz e disse: “Tu me remiste.” — “Não fui eu, foi a misericórdia de Deus.” — “Servindo-se de ti!” — “Aonde vais agora?” — “A uma esfera superior.” (p. 125) 
Licantropia

Algumas descrições recentes em livros espíritas falam do fenômeno da Licantropia - algo que aconteceria a Espíritos desencarnados com delitos graves - como um processo de deformação do perispírito. O livro "Libertação" (5) descreve um caso de um Espírito feminino que assassinou seus filhos e que foi deformado sob sugestão hipnótica "à forma de uma loba". A licantropia não aparece em nenhuma obra de Kardec (6), mas o fenômeno é confirmado nos relatos de Eugênia:
19 de dezembro — Chegou o Monstro. Posso vê-lo distintamente. É mais alto que os homens comuns. Tem cabelos hirsutos, negros; resfolga de um modo asqueroso. Protegi-me com a relíquia da Santa Cruz e aspergi água benta na aparição. Fixou-me o olhar algum tempo e depois foi embora pela janela. Nunca em minha vida tinha visto algo tão nauseabundo, a não ser em jardins zoológicos. E esse Monstro, nojento e asqueroso, esteve no meu aposento! (p. 90)
24 de abril— Faz três dias que me visita toda noite um animal  todo preto, intermediário entre búfalo e carneiro. Fiquei muito assustada. Pulou no meu leito. Para remediar minha covardia, recorri à água batismal e o quadrúpede me deixou em paz. (p. 140)
E não apenas nele. Segundo (2), há outras referências (7):
José de Gorres, o grande especialista em mística da Universidade de Munique, escreve em sua obra "Mística cristã" sobre a Irma Francisca do Santíssimo Sacramento, da Ordem das Carmelitas,  que “apareciam, às vezes, a essa Irmã, pessoas falecidas sob formas terríveis, mais parecendo um animal do que gente". (p. 25)
Concordando com André Luiz,  conforme conclui Eugênia, as "almas" nessas condições cometeram delitos muito graves. Por meio da presença da médium, o Espírito passa por uma transformação pelo qual reassume uma forma humana.

Por que eu? Paralelos com as descrições de Yvonne Pereira.

Uma das grandes questões de Eugênia era: por que ela? Por que as "almas" a procuravam? Em seus contatos, elas estão sempre a fitar profundamente seus olhos. Outros buscam tocá-la:
Algo tocou-me no ombro e senti muito medo. (p. 55) 
Aproximou-se de mim, e antes que o pudesse impedir, o dedo dele tocou na minha mão. (p. 63) 
23 de janeiro — Henrique mudou bastante. Nem sei dizer como ou em que, mas já não me inspira tanto nojo. Estou feliz porque não me tocou. (p. 102)
Disse-lhe: “Prefiro que não me toques, embora eu tenha muita vontade de ajudar-te.” (p. 95)
A impressão que temos é que a médium era uma "fonte" (de fluidos) em contato com a qual as "almas" se beneficiavam e transformavam profundamente.
Yvonne Pereira (1900-1984), a grande 
médium brasileira. Impressiona alguns 
paralelos que se pode fazer entre suas 
descrições com as de Eugênia 
von der Leyen.

É difícil deixar de comparar os contatos de Eugênia com as descrições de Yvonne Pereira. Exemplos encontramos no livro "Recordações da Mediunidade" (em azul abaixo, 8), seguido do equivalente quase idêntico com Eugênia (em verde). De novo, os grifos são meus:
Mesmo assim, como não enlouqueci de pavor, ou não me deixei obsidiar, nos momentos em que via o infeliz suicida deixar o sótão, flutuar no espaço atraído pelas minhas forças afins, sem mesmo disso se aperceber, e atingir o escritório para se deter junto de mim e continuar suas eternas convulsões? (8, Cap. 6, "Testemunho")
22 de junho — Desde à uma hora da noite até depois das cinco, esteve “ele” no meu quarto. Foi medonho. Curvou-se sobre mim diversas vezes e sentava-se junto ao meu leito. Chorei de tanto pavor. (2, p. 60)
O ruído provindo do mundo invisível é muito mais impressionante do que a visão, e senti-me chocada. Ainda hoje prefiro ver os Espíritos, qualquer que seja a sua categoria moral, a ouvir os ruídos que eles produzam, pois quaisquer ruídos ou sons provindos do  Além são assaz diferentes dos conhecidos na Terra, são como que difusos pelo ar, cavos, surdos, ocos. (8, Cap. 6, "Testemunho")
Tenho a sensação de que há muitas almas junto a mim, mas nada vejo; ouço, porém, passos e respiração arquejante pertinho de mim; em seguida, um barulho estranho, como se alguém batesse na parede. Apenas ouço e percebo esses ruídos, o que, para mim, é pior do que ver e assistir seja ao que for. (2, p. 55)
A explicação para a atração dos Espíritas por Eugênia pode ser talvez a mesma descrita pela grande medianeira do Brasil:
Se, outrora, como suicida que também eu teria sido, me vi socorrida por almas generosas do Espaço, as quais me ajudaram o reerguimento moral pelo amor de Deus, a lei suprema de mim exigiria agora que, por minha vez, eu socorresse a outrem, pois sabemos que essa lei determina a solidariedade entre as criaturas de Deus, e jamais receberemos favores ou auxílios de outrem sem que, posteriormente, deixemos de transmiti-los também à pessoa do próximo. (8, Cap. 6, "Testemunho")
...que também aparece em Eugênia:
Aproxima-se uma luta que tenho travado já tantas vezes: devo amar esse pobre coitado e não o consigo. Só quando chegar a amar essa alma embrulhada em execração serei capaz de fazer sacrifícios. (2, p. 94)
9 de agosto — Passei por algo pavoroso. Um estrondo me despertou. Acendi a luz e algo de horripilante se inclinava sobre mim. Constantemente meus pensamentos voltam àquilo: uma cabeça gigantesca com olhos tão apunhalantes que não parecem existir, ou antes: o rosto todo era um só olho que me fixava. “Vai-te!" — exclamei — o que procuras comigo?” — “A paz.” — “Não sou eu quem pode dá-la.” — “Mas tu deves!” — “O que me pode obrigar a isso?” — “Amarás o teu próximo como a ti mesmo. (p. 127)
Há muitas outras semelhanças. Por exemplo, a maior parte dos contatos de Eugênia dá-se durante o período da madrugada. Yvonne Pereira também afirma a mesma coisa e fornece, inclusive, uma explicação para esse fato.

Conclusões

É importante entender que a mediunidade de Eugênia é raríssima. Eugênia cai na categoria de médiuns de vigília, conforme a questão 1 no Cap. VI de "O Livro dos Médiuns" de A. Kardec. A espontaneidade, intermitência e falta de controle da médium demonstram sua mediunidade como de caráter neutro e absolutamente independente da crença de Eugênia ou de qualquer ato ou circunstância capaz de provocar os fenômenos.

Entretanto, Eugenia parece não compreender completamente a dinâmica do fenômeno que hoje podemos analisar graças à chave fornecida pelo Espiritismo e informes mais recentes da literatura espírita. Em particular, a atração das "almas" pela presença de Eugênia se deve a sua mediunidade peculiar, sua crença fervorosa no poder superior e sua inclinação para fazer o bem, não obstante a repulsa que descreve sentir pelos seres que a procuram. Ela convenceu-se gradativamente que era sua obrigação ajudá-los. Pouco a pouco, eles melhoram de condição, conforme ela mesma descreve.

Isso é reforçado por outra conclusão interessante: seus rituais (aspersão de água benta, sinais, presença da relíquia da cruz etc) parecem inócuos (9). O benefício conseguido para as "almas" deve-se à atuação de seu fluido por meio de sua vontade: quanto mais passa a amar os infelizes que a procuram, a interessar-se por eles, tanto mais eles conseguem ter seus sofrimentos abrandados.

É provável que outras descrições (7) existam de testemunhos semelhantes que aguardam melhores análise e estudos. Particularmente interessante também é o contexto católico que aprova e recomenda a leitura do diário de Eugênia. Não se fala em visões infernais ou ação demoníaca. O contexto piedoso e de fé que envolvia Eugênia fez sobreviver seus relatos, que não diferem das descrições de médiuns espíritas. E nem poderia deixar de ser, pois o fenômeno é o mesmo.
Referências e comentários

1 - José Ricardo Basílio a quem agradeço a sugestão do livro que deu origem a este post.

2 - E. von der Leyen (1994). "Conversando com as Almas do Purgatório". AM Edições, São Paulo. ISBN 85-276-0305-5.

3 - "Os vivos e os mortos na sociedade medieval".
4 - Conforme indicado por José Ricardo Basílio.

4b - Ver o Capítulo 22 de "O Livro dos Médiuns" de A. Kardec.

5 - Xavier F. C. (1992) "Libertação". 15a Edição. FEB.

6 - Sobre a possibilidade de Espíritos aparecerem em forma de animais, ver "O Livro dos Médiuns", Cap. VI, "Manifestações visuais", questão 35. Também, ao se ler "A história de um danado", na Revue Spirite de 1860, por exemplo, deparamos com interessantes relatos (grifos meus):
(A São Luís) ─ Teríeis a bondade de nos dar algumas informações sobre este Espírito, já que ele não pode ou não quer dá-las?
─ É um Espírito da pior espécie, um verdadeiro monstro. Fizemo-lo vir, mas não foi possível obrigá-lo a escrever, malgrado tudo quanto lhe foi dito. Ele tem seu livre-arbítrio, do qual o infeliz faz triste uso.
14. ─ Esse Espírito é sofredor e infeliz. Podeis descrever o gênero de sofrimento que experimenta?
─ Ele está persuadido de que terá de ficar eternamente na situação em que se encontra. Vê-se constantemente no momento em que praticou o crime. Qualquer outra lembrança lhe foi apagada e qualquer comunicação com outro Espírito foi interdita. Na Terra, só pode ficar naquela casa, e quando no espaço, nas trevas e na solidão.
62. ─ Podeis descrever seu gênero de suplício?
─ É-lhe atroz. Como sabeis, foi condenado a ficar no local do crime, sem poder dirigir o pensamento a outra coisa senão ao crime, sempre ante os seus olhos, e julga-se eternamente condenado a essa tortura.
Tais descrições se assemelham ao que André Luiz descreveu em outros termos (influência hipnótica etc).

7 - Joseph von Gorres (1840). Mística cristã, v. III, p. 476. Editora Manz, Regensburg. O leitor interessado poderá, talvez, estudar do ponto de vista espírita a vida de outros místicos católicos citados na obra incluem:
  • (S) Catarina de Gênova (1447-1510)
  • (S) Teresa D'Ávila (1515-1582)
  • Crescentia Höss de Kaufbeuren (1682-1744)
  • Maria Ana Lindmayr (1657-1726)
  • Heinrich Seuse (1295-1366)
  • Margarete Schäffner (?-1949)
  • Ana Caterina Emmerich (1774-1824)
8 - Pereira Y. (1992). Recordações da mediunidade. Ditado pelo Espírito de A. B de Menezes. 7a Edição. Feb.

9 - Conforme esclarece A. Kardec: 
Nenhum objeto, medalha ou talismã tem a propriedade de atrair ou repelir os Espíritos; a matéria não tem nenhuma ação sobre eles. Um bom Espírito nunca aconselha semelhantes absurdos. A virtude dos talismãs nunca existiu a não ser na imaginação das pessoas crédulas. ("O Livro dos Médiuns", cap. XXV.)

4 de janeiro de 2016

S. José de Cupertino e a mediunidade de efeitos físicos


Não menos positivo é o fato do erguimento de uma pessoa; 
mas, é algo muito mais raro, porque é mais 
difícil de ser imitado. É sabido que o Sr. Home se elevou 
mais de uma vez até ao teto, dando assim volta à sala.
Dizem que S. Cupertino possuía a mesma faculdade, 
não sendo o fato mais miraculoso com este do que com aquele.

A. Kardec, "A Gênese", Cap. XIV, "Os fluidos", II - 
Explicação de alguns fenômenos considerados sobrenaturais.

Estaria o Século XXI pronto para confrontar 
o fenômeno destruidor de paradigmas, a levitação?  (M. Grosso, 1)

O fenômeno mediúnico manifesta-se das mais variadas maneiras, numa escala de força e tempo que ainda nos é desconhecida. Quando surgem as circunstâncias favoráveis, eclodem sem consideração por fé, crença ou ponto de vista. Se há manifestações tão singelas e apagadas que passam desapercebidas da maioria, por outro lado, há as que causam admiração e espanto, tamanho o grau de aparente desrespeito às leis naturais - porque representam operação  de leis desconhecidas - que imprimem as suas testemunhas. A revista "Edge Science" de Dezembro de 2015 (número 24, 1) traz um artigo interessante de Michael Grosso sobre uma figura lendária da Igreja, o santo S. José de Cupertino (160-1663). José de Cupertino (Giuseppe da Copertino) foi canonizado por Clemente XIII em 1767 e, até hoje, é adorado por Católicos que veem nele uma das 200 derrogações (ou suspensões) das leis naturais por obra direta de Deus que a Igreja conta entre seus santos. Por que? Eis uma das histórias que se conta, segundo M. Grosso (1):
Próximo ao natal de 1632, o Padre Giuseppe convidou alguns pastores a trazer seus instrumentos musicais para tocar na igreja de Grotella, na Itália. Ao entrarem na igreja, começou José a cantar e dançar. Mais tarde os pastores narraram sob juramento o que aconteceu: "Padre Giuseppe estava tão feliz que começou a dançar no centro da nave aos som das flautas. De repente, suspirou em voz alta e gritou, voando pelos ares como um pássaro, até metade da distância do teto, onde continuou a dançar acima do altar principal. Isso foi ainda mais formidável, pois o altar estava repleto de velas acesas e ele permaneceu entre elas sem derrubar nenhuma. Ficou naquela posição, com seus joelhos acima do altar, abraçado ao tabernáculo por cerca de quinze minutos e então retornou, sem causar qualquer transtorno. Seus olhos estavam cheios d'água e disse: 'Louvado seja Deus, meus irmãos'. Permanecemos todos em admiração e disse comigo mesmo: 'Isso sim é que é um milagre' " (2)
José de Copertino tinha a incrível capacidade de levitar, fenômeno que ocorreu por 35 anos ininterruptos até seu falecimento. Antes da manifestação de voo, José caia numa espécie de "êxtase", conforme descrito por seus biógrafos. O mais difícil é desacreditar as milhares de testemunhas que viram José levitar sob pena de se chegar a uma explicação ridícula ou anacrônica. Nas palavras de M. Grosso (1):
Poderíamos nos perguntar: dado que José era tão submisso e aparentemente pouco inteligente (6), como pôde ele enganar tantas pessoas, algumas inclusive bastante ilustres? De acordo com registros históricos, José levitou diante do Papa Urbano VIII, vários cardiais, médicos, o Rei da Polônia, o Duque de Brunswick, a Princesa de Savoia e numerosas outras personalidades VIPs. Podemos concluir que nenhum deles era esperto o suficiente para desmascarar esse impostor? Poderia José ter enganado o Papa Bento XIV (Prosper Lambertini), conhecido por ser um racionalista? A alternativa a essa explicação é que todos esses dignatários eram parte de uma ilusão em massa para criar a imagem de um padre voador. Mas, com que objetivo? E, por que, depois de tantos séculos, ninguém se apresentou para revelar a verdade sobre tal conspiração?
As evidências de levitação de José de Cupertino têm um peso ainda maior porque, segundo (1), durante a contra-reforma protestante, a Inquisição chegou a encarcerar José, proibindo-o de realizar a missa ou participar de procissões públicas. As autoridades inquisitoriais não queriam que a população o vissem voar e, assim, buscassem no padre curas e outros milagres, como está fartamente registrado em autos de várias paróquias como Grotella, Nápoles, Roma, Nardo, Pietra Rubbia, Osimo e Fossombrone (1). Pode-se dizer qualquer coisa da ética dos métodos e das motivações do tribunal do Santo Ofício, mas o fato é José foi preso justamente pela comoção pública causada por seus voos, e seria ele um caso de fogueira se descobrissem uma impostura. O estado de êxtase em que a população ficava ao ver o fenômeno alarmou outras paróquias que procuram na Inquisição uma maneira de parar as manifestações.  
"S. José de Cupertino voa 
diante da Basílica de Loreto" por 
Ludovico Mazzanti (1686–1775)

José de Cupertino e a mediunidade de efeitos físicos

Segundo M. Grosso em (1), a época de José de Cupertino era um tempo que pessoas eram queimadas vivas caso não tivessem as "credenciais de fé" necessárias. Portanto, os registros históricos confirmam a realidade do fenômeno da levitação e criam um problema difícil para os céticos. É o que chamamos de "anomalia". A explicação do fato, portanto, deve ser outra. Ainda segundo Grosso:
Quando olho para as fontes históricas das narrações sobre José, encontro registros bem documentados, narrativas que descrevem fenômenos estranhos, não somente levitação: histórias de fragrâncias inexplicáveis que persistiam por meses ou anos impregnadas a objetos, descrições sobre curas, do que hoje se chama de "telepatia" ou que, no Século XVII, era conhecido com "leitura dos corações" ou "discernimento" e, finalmente, a vida de José foi capaz de gerar muitos documentos que descrevem suas profecias e clarividência. Domenico Bermini, um historiador eclesiástico, afirma em uma biografia de José (de 1722) que ele registrou 22 profecias de pessoas que iriam falecer. (1)
Manifestações de efeitos físicos são pródigas em fenômenos de levitação (o caso das mesas girantes) e curas. E as tais "profecias" descritas pelos biógrafos de José de Cupertino atestam sua capacidade mediúnica intelectual, sua habilidade de ouvir ou receber informações dos Espíritos sobre fatos à distância - particularmente associados ao estado de pessoas próximas à desencarnação. Ainda que Espíritos não apareçam (6) no que se produziu dos relatos do santo (e não poderiam aparecer, pois aquela era uma época de perseguições aos que não estavam de acordo com a fé ortodoxa), o que temos dos relatos é suficiente para caracterizá-lo como um dos mais poderosos médiuns que já passou pela Terra. 

Sobre S. Cupertino, comenta Kardec (3):
Os fenômenos espíritas, bem como os magnéticos, antes que suas causas fossem conhecidas, tiveram que passar por prodígios. Ora, como os céticos, os espíritos fortes, isto é, os que têm o privilégio exclusivo da razão e do bom-senso, não creem que uma coisa seja possível desde que não a compreendem. É por isso que todos os fatos tidos como prodigiosos são objeto de suas zombarias. Como a religião contém grande número de fatos desse gênero, não creem na religião. Daí à incredulidade absoluta há apenas um passo. Explicando a maioria desses fatos, o Espiritismo lhes dá uma razão de ser. Ele, pois, vem em auxílio à religião, demonstrando a possibilidade de certos fatos que, por não mais terem caráter miraculoso, não são menos extraordinários; e Deus nem é menos grande, nem menos poderoso por não haver derrogado as suas leis. De quantos gracejos não foram objeto as levitações de São Cupertino? Ora, a suspensão no ar dos corpos pesados é um fato explicado pelo Espiritismo. Nós, pessoalmente, fomos testemunha ocular, e o Sr. Home, como outras pessoas de nosso conhecimento, repetiram várias vezes o fenômeno passado com São Cupertino. Assim, o fenômeno entra na ordem das coisas naturais.
Além da citação acima, Kardec mais de uma vez comentou sobre a descrença e escárnio que sempre acompanhava as referências a José de Cupertino. Na Revista Espírita de Outubro de 1859, artigo "Os Milagres", escreve: "De quantas graçolas não foram objeto as levitações de São Cupertino?" Tal fenômeno tem a mesma causa dos médiuns (4, 5) D. D. Home (1833-1886) e C. C. Mirabelli (1889-1951), por exemplo, que realizaram levitações no Século XIX na Europa e XX no Brasil, respectivamente. Mas, no artigo de M. Grosso, temos a confirmação da mediunidade de José de Cupertino, pela presença de outras manifestações espontâneas, típicas da mediunidade de efeitos físicos e intelectuais. 

Qualquer que seja o ponto de vista que se tenha sobre os voos de S. Cupertino, os registros históricos permanecem como seus testemunhos e não permitem fácil interpretação em termos de teorias de conspiração, alucinação em massa ou fraude. Fazem eles parte de uma época em que fraudes teriam vida curta, tanto por conta da existência de uma polícia doutrinária que punia severamente os que se aventuravam a zombar da fé hegemônica, como pela titularidade e inteligência dos notáveis que assistiram o fenômeno mais de uma vez.

Ilustração da levitação de D. D. Home. Fonte: Wikipedia
Continuarão os céticos a duvidar dentro de seu direito. No Século XXI,  qualquer registro fotográfico de um genuíno fenômeno de levitação seria facilmente explicado como manipulações de softwares como o "Photoshop". Céticos mais duros exigiriam, para sua aceitá-lo, um número arbitrário de demonstrações nas mais exóticas condições possíveis, que levariam o médium à loucura. De nossa parte, ficamos contentes em descobrir na história mais um exemplo de mediunidade rara de efeitos físicos, que confirma as regularidade - não obstante peculiaridade - das manifestações mediúnicas descobertas pelos pioneiros do Espiritismo. Podemos dizer que José de Cupertino, duzentos anos antes, antecedeu o fenômeno das mesas girantes do alvorecer do Espiritismo; tendo sido provavelmente ajudado por muitos Espíritos em suas manifestações de voo. Seu caráter piedoso o tornou insuspeito ao Santo Ofício, que procurou cercear entretanto as manifestações. Tivesse as mesas girantes surgido naquela época, tal como aconteceu no Século XIX, muitas pessoas teriam ido para a fogueira.

Referências

1. M. Grosso (2015) Ectasy and Gravitation: The Levitation of Joseph of Copertino. Edge Science, n. 24. Um publicação da Society for Scientific Exploration. A revista pode ser acessada em:

http://microver.se/sse-pdf/edgescience_24.pdf (Acesso: dez. 2015)

2 M. Grosso (2016). The Man Who Could Fly: St. Joseph of Copertino and the Mystery of Levitation. Rowman & Littlefield, p. 79.

3. A. Kardec (1860)  O Maravilhoso e o sobrenatural. Revista Espírita, Edição de setembro.

4. Outros médiuns menos conhecidos e associados à manifestações de levitação são: Amadee Zuccarini, Einer Nielsen, Boerge Michaelsen e Colin Evans, esse último, entretanto, considerado um impostor segundo os autores céticos da Wikipedia. Há ainda o caso de uma levitação do faquir  Subbayah Pullavar. 

5. Ver http://www.spiritarchive.org/levitation-of-humans.html

6.  De acordo com http://capuchinhosprsc.org.br/santos-capuchinhos-2/jose-de-cupertino-18:
Ele era carente de capacidade intelectual a ponto de chamar-se a si mesmo de “Frei Burro”. Mas, cheio de luzes sobrenaturais, discorria em profundidade sobre temas teológicos e resolvia intrincadas questões que lhe eram apresentadas.