Mostrando postagens com marcador mente quântica. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador mente quântica. Mostrar todas as postagens

4 de maio de 2016

Conceitos básicos de Física Quântica VIII

Imagem de uma chama de um fósforo. 
Esse fenômeno extremamente vulgar e macroscópico 
tem sua explicação na Física Quântica.
É comum ouvir relatos de que a física quântica (FQ) foi feita para explicar fenômenos microscópicos e está cercada de mistérios.  Por exemplo, Hélio Schwartsman publicou recentemente (1):
Quando alguém apela a efeitos quânticos para explicar qualquer fenômeno em escala um pouco maior do que a de partículas subatômicas, são grandes as chances de que estejamos diante de um picareta "new age".
Isso é, entretanto, uma afirmação equivocada.

É verdade que existem ainda questões relacionadas a interpretações mais profundas dos fundamentos da FQ. É também verdade, conforme discutimos em posts anteriores (2), que existem fenômenos quânticos que não possuem equivalentes em nosso mundo "clássico". Talvez o formalismo quântico não ajude muito a tirar esse impressão porque as relações entre grandezas na FQ exigem tratamento em espaços matemáticos diferentes daqueles da chamada "Física Clássica". Porém, no nosso entendimento, o problema é pouco motivado por esses mistérios, mas sim por uma visão de mundo simplificada, em que tudo o que é "observável" (3) é considerado "ordinário" e o que não é "misterioso". 

O macroscópico é ordinário, o microscópio é misterioso

Em suma: tudo aquilo que consigo ver, tocar, cheirar etc, e que está sob a classificação de "fenômeno macroscópico", é considerado da alçada das explicações comuns. Isso está bastante difundido em textos populares que tentam explicar física quântica, inclusive na avaliação de Hélio Schwartzman. O que não é visível ou detectável não existe, é mistério ou é assunto para mentes privilegiadas. De acordo com esse raciocínio, a FQ seria aplicada apenas ao que não se vê, como é o caso de átomos ou partículas subatômicas, pequenas demais para serem detectadas pelos sentidos humanos.

Mas, na verdade, isso esconde dificuldades ainda maiores no processo de explicação na ciência. A base da explicação em qualquer ciência não necessariamente envolve aquilo que se vê, porque devemos separar as causas das consequências. Assim, em muitos fenômenos ordinários os efeitos são visíveis, mas as causas não são. Do contrário, crê-se que, para que haja explicação, as causas devem estar igualmente acessíveis, o que raramente é o caso. Exemplos não faltam:
  • Em genética: os efeitos das anomalias, doenças e outras disconformidades observadas facilmente por exame de seres orgânicos está, muitas vezes, nos genes, que são causas inacessíveis diretamente;
  • Em física: a temperatura dos corpos (que podemos sentir por toque) está relacionada à velocidade de partículas minúsculas que compõem o material que são causas inacessíveis diretamente;
  • Na medicina: a temperatura e os sintomas dos pacientes acometidos por uma doença podem ser causados pela influência de minúsculos organismos (bactérias ou vírus) que são inacessíveis diretamente (3b);
  • Em geologia: a explosão de lava observada em vulcões se deve à movimentação oculta de magma nas profundezas da terra, que são inobserváveis. 
É quase que uma regra geral na ciência que causas sejam sempre ocultas, não diretamente observáveis ou apenas inferidas indiretamente por meio de outras medidas, frequentemente envolvendo complexas teorias e relações causais. Isso também é verdade para a FQ.

Já discutimos aqui e em outros trabalhos os diversos níveis de explicação que os fenômenos estão sujeitos. Explicações ordinárias frequentemente envolvem causas simples. Assim, se ocorre um problema no meu carro e acho que pode ser por "superaquecimento da água no radiador", a causa aventada é um evento observável (água aquecida). Em ciência, a maior parte das explicações não são desse tipo. Elas envolvem descer até outras causas, ainda mais fundamentais, que devem ser inferidas indiretamente (3).

A Física Quântica e o problema da consciência.

Como a manifestação da consciência é considerada uma coisa "misteriosa", então somente a FQ, um mistério igual, talvez forneça alguma explicação para a mente. Essa é a linha de raciocínio seguida por uma imensa literatura - frequentemente bastante entusiasta (4) - que busca aplicar conceitos, noções e resultados da FQ em problemas da mente. É uma linha aparentemente natural de inquérito, já que a FQ é uma teoria extremamente bem sucedida (paradigma científico), que fornece explicações para uma ampla classe de fenômenos materiais. Não seria natural que ela também explicasse a mente?

Uma lista de fenômenos macroscópicos (ver abaixo) com causas quânticas (ou seja, explicados pela FQ) pode ser levantada como uma excelente motivação para a crença da generalidade da FQ em contraposição ao que clama o autor da referência (1). Assim, não duvidamos que exista um fundamento microscópio para a movimentação de matéria no cérebro associada aos fenômenos da consciência. Acreditamos ser até mesmo trivialmente verdade que a FQ tenha um papel importante a desempenhar no sistema nervoso, ainda que muitos neurocientistas, por falta de conhecimento no assunto, continuem a propor explicações que dispensem a FQ. Mas, com o desenvolvimento normal da ciência, acreditamos que FQ eventualmente fará parte do currículo de cursos de biologia (5), uma vez que seus fundamentos subsidiam a compreensão de inúmeros fenômenos físicos ordinários.

Porém, isso é bastante diferente de se afirmar que a FQ irá solucionar o problema da consciência. Aqui há dois pontos de vista que vale a pena detalhar:
  1. A noção de que a FQ é importante, que tem uma lógica diferente da ordinária, que não está naturalmente integrada ao senso comum e que não dispõe ainda de uma interpretação absolutamente consensual sobre seus princípios pode despertar nos neurocientistas a ideia de que a consciência necessite de outra abordagem, de um tratamento especial, que não se beneficie tanto de paralelos "clássicos" ou que novas técnicas de medida sejam necessárias para a exploração dos fenômenos da consciência;
  2. A assunção direta de que a FQ seja responsável pela consciência, atropela o debate sobre as diferenças marcantes entre aspectos da matéria e aqueles associadas à "coisa pensante", resultando em uma extrapolação sem bases suficientes em nosso conhecimento presente.   
Um materialismo travestido

A afirmação de que a FQ é responsável pela consciência é uma forma de materialismo que não é considerada de forma correta por espiritualistas que defendem explicações quânticas da consciência como uma maneira de se libertar do materialismo.

De fato, ao se propor que a mente é quântica não se pode deixar de atribuir aos átomos - que têm reconhecidamente natureza quântica - a causa última de sua manifestação. De outra forma, a física quântica apenas introduz uma lógica diferente, onde a incerteza é incorporada nas relações entre seus elementos (função de onda) que se reduzem, quando analisados de forma isolada, a entidades sem nenhum dos atributos reconhecidos publicamente como característicos da mente. Em suma:  o uso puro e simples da FQ no tratamento aparente do problema de consciência, em que pese o formalismo extravagante que introduz, pouco ou nada contribuirá fundamentalmente para o problema da consciência, a menos que se considere essa uma entidade separada do cérebro por princípio, conforme descrevem algumas interpretações quânticas do famoso "problema da medida".

Assim, embora seja bastante comum que espiritualistas defendam abertamente a FQ e sua relação com a mente, não se pode deixar de notar os grandes obstáculos à implementação prática dessa relação e até mesmo as consequências negativas para o desenvolvimento do dualismo. E, retornando ao assunto inicial desse post, propostas de teorias sobre o problema da mente ou da consciência de novo terão que enfrentar um fenômeno cuja causa não é observável, embora os efeitos o sejam. Mas, continuarão céticos a negar a existência do problema ?

Lista de fenômenos ordinários que são explicados pela Física Quântica

A lista abaixo é uma pequena compilação que está longe de ser completa. Explicar como cada um desses fenômenos ocorre obviamente não caberia no espaço deste blog. O leitor deve entender que as causas desses fenômenos caem na classificação de entidades não observáveis. A FQ explica como essas entidades se relacionam (como elas interagem) e criam as impressões que são, por sua vez, observáveis. Assim, por exemplo, a relação entre a temperatura e a cor de uma estrela (que são observáveis) está ligada à estrutura de distribuição de energia das partículas ou átomos que geram a luz. Para uma referência adicional a essa fenomenologia ver (6). 

Astrofísica
  1. Propriedades de estrelas de nêutrons e anãs-brancas;
  2. O funcionamento das estrelas (cor, brilho, dimensão, evolução e idade etc);
Fenômenos luminosos
  1. Cor dos objetos;
  2. Emissão de luz das chamas;
  3. Mudança de cor de reagentes em reações químicas;
  4. Transparência de materiais;
  5. A curva de luz do corpo negro;
Eletricidade e magnetismo
  1. O comportamento de condutores elétricos, isolantes, semicondutores;
  2. O transistor;
Fenômenos térmicos e fluídicos
  1. A supercondutividade elétrica de materiais a baixas temperaturas;
  2. A superfluidez de materiais a baixas temperaturas;
Química
  1. A razão da matéria ordinária (atômica) ser estável;
  2. A estrutura da tabela periódica;
  3. As ligações químicas;
Energia
  1. Tempo de vida de substâncias radioativas;
  2. Reações nucleares;
  3. Usinas atômicas;
Biologia
  1. A eficiência energética da foto síntese (5)
Referências e notas

Agradeço ao Alexandre Caroli pela referência e citação de (1).

1)  H. Schwartsmann. "Mente quântica". Acesso em Fevereiro de 21016. http://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2016/02/1737578-mente-quantica.shtml


3) As inferências envolvem, inclusive, a busca por fenômenos diversos que comprovariam o efeito das causas admitidas;

3b) É verdade que foram desenvolvidos mecanismos ou equipamentos que permitem observar o que não pode ser acessado diretamente pelos sentidos. Mas, aqui, o leitor deve atentar para a arapuca lógica que dispensa a noção de que o funcionamento desses equipamentos exigem a crença em muitas explicações ou teorias. Portanto, esse estado aumentado de observação, embora utilize os sentidos, não dispensa a crença, o que torna inviável a fundamentação de nosso conhecimento exclusivamente nos sentidos humanos.

4) O próprio Helio Schwartsman cita o texto de Wendt, A. (2015), Quantum mind and social science, Cambridge University Press, como "uma obra séria que trata de ontologia sem recorrer a deuses". Outras referências são:
  • Mindell, A. (2012). Quantum mind: The edge between physics and psychology. Deep Democracy Exchange.
  • Lockwood, M. (1989). Mind, brain and the quantum: The compound'I.'. Basil Blackwell.
  • Penrose, R. (1994). Shadows of the Mind (Vol. 4). Oxford: Oxford University Press.
  • Stapp, H. P. (2004). Mind, matter, and quantum mechanics (pp. 81-118). Springer Berlin Heidelberg.
  • Clayton, P. (2004). Mind and emergence: From quantum to consciousness.
  • Stapp, H. P. (2001). Quantum theory and the role of mind in nature. Foundations of Physics, 31(10), 1465-1499.
  • Goswami, A. (1990). Consciousness in quantum physics and the mind-body problem. Journal of Mind and Behavior.
  • Woolf, N. J., & Hameroff, S. R. (2001). A quantum approach to visual consciousness. Trends in cognitive sciences, 5(11), 472-478.
  • Bass, L. (1975). A quantum mechanical mind-body interaction. Foundations of Physics, 5(1), 159-172.
A principal revista que explora essa abordagem é a Neuroquantology (acesso em fevereiro de 2016). 

5) Quantum mechanics explains efficiency of photosynthesis. Ver http://phys.org/news/2014-01-quantum-mechanics-efficiency-photosynthesis.html (acesso em março de 2016)

6) R. Healey. How Quantum Theory Helps us Explain. Disponível em: http://arxiv.org/ftp/arxiv/papers/1110/1110.6554.pdf. Acesso em Fevereiro de 2016.