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30 de abril de 2013

IV - Como a parapsicologia poderia se tornar uma ciência. (P. Churchland)

Numa série de posts, apresentamos uma tradução comentada do artigo "How Parapsychology could become a science" (Inquiry: An Interdisciplinary Journal of Philosophy, Volume 30, Issue 3, 1987) do filósofo Paul Churchland. Este artigo é uma crítica epistemológica bem embasada à parapsicologia, crítica que deveria ser seriamente considerada pelos praticantes dessa disciplina, se eles pretendem, de fato, fazê-la avançar. Alem disso, Churchland lança dúvidas bem fundamentadas sobre o paradigma materialista presente. Vale a pena estudar com atenção este trabalho. Todas as referências dele serão apresentadas no último post. O texto em azul é do artigo.

3. Parapsicologia: o lado experimental.
Já tive a chance de expor minha principal crítica à tradição experimental da Parapsicologia. É uma crítica metodológica e ela em nada diz contra a honestidade ou o cuidado daqueles que conduzem os experimentos relevantes dela. A discussão até este ponto tem sido deliberadamente não crítica no que diz respeito à confiabilidade dos resultados experimentais em Parapsicologia.

Isso acontece porque a validade da crítica metodológica que fiz é bastante independente de quão confiáveis esses resultados são. Mas, seria errôneo da minha parte para com o leitor levá-lo a achar que quaisquer resultados dessa área devam ser aceitos. Certamente, nenhum deles é amplamente aceito fora da comunidade relativamente pequena da Parapsicologia. Não há análogo do movimento Browniano em que eles, tanto quanto nós, possamos confiar.

De fato, não está claro que eles tenham qualquer resultado positivo e replicável absolutamente (1). A história dessa área está cheia de escândalos mais ou menos sérios, que vão das sessões fabricadas da década de 20 e 30, a manufatura deliberada de dados falsos pelo renomado S. G. Soal na década de 40, passando pela "psicofotografia" expertamente maquinada por T. Serios na década de 60 até a os experimentos mal controlados de R. Targ e H. Puthoff ao redor de Uri Geller (um não declarado, mas bem treinado mágico) nos anos 70. Essas e outras óperas cômicas já foram bastante discutidas em outro lugar (Randi, 1982) e, portanto, não vou me ocupar com elas aqui (2). Mas, elas merecem ser citadas não porque foram escândalos. Esses casos são lições importantes porque foram tomadas em grande conta na época em que apareceram como formando as melhores evidências para os fenômenos paranormais já obtidos. E elas merecem também ser comentadas porque as fragilidades que acabam revelando são endêmicas na alma humana.

Por outro lado, não podemos rotular todo mundo de tolo, nem mesmo a maioria. Parapsicólogos frequentemente reportam resultados completamente negativos e que melhor testemunho de honestidade do que esse? O que queremos saber é o que devemos fazer com aqueles poucos estudos que foram aparentemente conduzidos com integridade e zelo escrupuloso e que mostram, estatisticamente, desvios significativos em relação àquilo que pensamos ser fisicamente explicável?


Não há resposta completamente geral que seja adequada a essa questão. Cada caso deve ser tratado em seu próprio mérito. Mas, uma coisa podemos exigir, antes de ficarmos empolgados com qualquer um deles, é que possam ser replicados (3), preferivelmente por um laboratório independente. As razões para isso não tem nada a ver com estupidez ou falsidade. Se, durante cinco anos de pesquisa parapsicológica, 1000 experimentos estatísticos forem realizados com honestidade e cuidado máximo, estamos certamente no caminho de se obter uma percentagem muito pequena de casos que se aproximam ou excedem o nível de "significância", com base apenas em fundamentos estatísticos. Isso significa que haverá uma pequena quantidade de resultados "positivos", mesmo que isso nada tenha a ver com o paranormal e ainda que os investigadores tomem o máximo de cuidado com os protocolos experimentais (4).


Esses resultados positivos, supomos, serão publicados. Mas veja só. Se 500 dos 1000 experimentos originais foram esquecidos porque os investigadores desapontados decidiram seguir carreira em outra direção; e se 400 dos 500 remanescentes foram esquecidos porque eles também deram resultado negativo e os investigadores procederam apenas à análise dos 100 restantes e se; desses, 80, embora submetidos da forma mais honesta possível, nunca são publicados porque os editores se tornaram impacientes com resultados parapsicológicos ainda mais negativos, então os resultados "acidentalmente significativos" de, digamos, 3 ou 4 experimento dos 1000 originais serão considerados contra uma amostra de apenas 20 experimentos publicados. Assim, esses últimos herdarão uma significância imerecida (5).

A única maneira de revelar esses acidentes estatísticos (e casos reais, insistimos, são inevitáveis) é justamente repetir aqueles que se mostraram significativos e ver se os resultados originais são reobtidos. Pelo que sei, nenhum resultado genuinamente anômalo sobreviveu a tal teste. Há, naturalmente, muitos resultados surpreendentes que foram e continuam a ser replicados, frequentemente na grande mídia ou em fóruns públicos. Mas, embora impressionantes, eles não são parapsicológicos (6). 

O caminhar sobre brasas é um exemplo. Ele tem sido realizado centenas de vezes em muitas culturas diferentes e é frequentemente associado a fatos paranormais. Existe um "instituto de autoajuda" aqui na minha comunidade que mantém sessões de caminhar sobre brasas na praia nas primeiras horas da manhã. Tais sessões são consideradas a culminação de seminários de autoajuda de cinco horas de duração e o objetivo deles é mostrar ao público pagante o que eles aprenderam sob a tutela de seus mentores, fazendo-os caminhar vivamente sobre uma cama cuidadosamente preparada com carvão em brasa. Alguns caminhantes adquirem bolhas nos pés com a experiência, mas a maioria deles não e eles, naturalmente, ficam impressionados com o espetáculo. A explicação que é passada para eles é que eles aprenderam a amplificar seus "campos biomagnéticos" que estão em volta de seus pés e que serve para protegê-los do calor.

Isso é uma bobagem sem tamanho, naturalmente, mas o carvão está, de fato, a uma temperatura bem alta.  Embora já estejam bastante consumidos, eles ainda podem ser vistos avermelhados, pelo menos na escuridão. O truque é que não há truque. Nesse estágio de combustão elevada, o carvão tem a densidade do isopor e uma capacidade térmica bem baixa. Embora a temperatura seja alta, o carvão simplesmente não contém energia térmica suficiente e não pode conduzi-la aos pés rápido o suficiente para causar queimaduras sérias nos quase 1,6 segundos de contato total dos pés com o carvão (quatro passos de 0,4 segundos cada). As pessoas pensam que podem ser queimadas por qualquer coisa, mesmo que minimamente incandescente, mas nem sempre isso é verdade. A camada de carvão deve se preparada com muito cuidado, entretanto, então eu não recomendo fazer isso por si mesmo, especialmente com lascas de carvão vegetal, o material mais à mão provável. Eles são mais quentes do que brasas de madeira e eles se partem liberando mais calor. Não tente sequer pisar neles.

O que recomendo é tentar o seguinte. No escuro, de forma que você possa melhor julgar o estado de aquecimento do carvão, pegue uma lasca quase em extinção com uma pinça de churrasco e toque-a levemente com a palma da mão ou planta do pé. Esse tipo de experiência permite grande nível de controle e é bastante seguro. Você ficará surpreso em ver o quão benigno é essa operação com o carvão, ao menos para tempos de contato menor que meio segundo. Caminhar sobre brasas é não só real como replicável, mas não é paranormal (ver Leikind and McCarthy,1985; P. M. Churchland 1986b).

Outro espetáculo comum é do tipo de leitura de mente clarividente que é encenado por mágicos da mídia, profissionais ou não. Aqui, não posso dar nenhum resumo de quão intricadas são essas performances: mágicos tem inúmeras maneiras de nos enganar. Mas, posso comentar algo sobre isso a fim de dar uma amostra de como  se parece.


Minha esposa e colega, Patricia Churchland, uma vez deslumbrou sua classe de filosofia lendo em voz alta e com olhos fechados frases escritas em uma pilha de envelopes bege que um estudante tinha passado para ela no começo da aula. Em cada ocasião de "leitura clarividente" de um envelope ainda fechado, ela perguntava se qualquer estudante teria submetido uma frase anunciada. Enquanto o estudante em questão manifestava incrível concordância, ela abria o envelope para checar casualmente a precisão de sua leitura e, então, passava para o próximo envelope e à adivinhação de seu conteúdo (7).

Ela conseguia acertar tudo. O truque é bem impressionante e exige apenas a colaboração de um estudante entre o grupo, alguém que falsamente concorde com o sucesso da "leitura" do primeiro envelope. De fato, ela apenas compensava sua primeira leitura com base na confirmação explícita do estudante em quem confiava. Enquanto abria o envelope para "checar a precisão" de sua primeira leitura, ela estava na verdade lendo o que outro estudante perfeitamente honesto tinha escrito no primeiro envelope. Essa frase era a base para a segunda "leitura". Enquanto mantendo o segundo envelope misteriosamente diante de si, ela anunciava o conteúdo do então primeiro envelope. O autor do conteúdo daquele envelope então confirmava com admiração o "sucesso" da leitura e o envelope era simultaneamente aberto para "checar" o acerto. Isso fornecia a base para a terceira leitura e assim por diante, até completar toda a pilha. O resultado era uma classe de estudantes em completo pandemônio. Poderes psíquicos evidentemente são mais fáceis de se obter do que se pode imaginar. 

Esses dois exemplos, leitura psíquica e caminhar sobre brasas não tem relação direta com a Parapsicologia acadêmica. Mas, eles ajudam-nos a ver como fenômenos paranormais ostensivos podem ser facilmente criados a partir do normal e do ordinário (8). E eles ajudam a nos armar contra os predadores dessa área, que são muitos. Devemos ter simpatia por aqueles que tentam fazer pesquisa paranormal responsável em relação às bobagens anunciadas pela mídia, práticas de culto e a atividade de exploradores inescrupulosos. É o mesmo que tentar um serviço legítimo de acompanhamento numa zona de meretrício declarado. Qualquer policial de passagem poderia se livrar de uma suspeita inicial, assim como de uma segunda e terceira suspeitas.

Comecei este trabalho perguntando se a Parapsicologia poderia se tornar uma ciência. Minha resposta é que ela precisa de uma teoria que a organize. E ela também precisa de uma tradição experimental que objetive a tarefa positiva de testar e refinar uma teoria geral alternativa da mente, ao invés de se dedicar a tarefa negativa de encontrar buracos inexplicáveis no materialismo. Parapsicólogos ainda não forneceram o material conceitual necessário para a construção desse programa de pesquisa coerente e bem motivado, mesmo admitindo que o materialismo é, de fato, falso. Essa é a razão porque a Parapsicologia ainda é uma pseudociência.

Notas

1 – Como Churchland segue no ‘vácuo teórico’ da Parapsicologia, a dúvida torna-se companheira inseparável dele, o que permite questionar a existência de fenômenos autênticos.

2- No caso de Ted Serios, não é verdade que o ‘admirável Randi’ tenha conseguido replicar as psicopictrografias dele.  O caso de Ted Serios está envolvido em um mistério e merece, por si, um estudo a parte. O que Churchland questiona principalmente é o caráter de ‘espetáculo’ que muitos eventos anômalos são revestidos, o que traz, naturalmente, suspeitas sobre sua validade e real existência na mente dos céticos, suspeitas que são amplificadas pelo caráter comercial em que se revestem os espetáculos. 

3 – A ‘replicação’ a que Churchland se refere aqui vem na esteira da suposta necessidade da Parapsicologia se comparar a uma ciência ordinária. No caso dessas ciências, a facilidade, simplicidade e o caráter ‘automático’ dos fenômenos confere facilmente a característica de reprodutibilidade. Isso não pode ser exigido dos fenômenos psíquicos, o que Churchland parece ignorar largamente.

4 – Veja que o caminho seguido pela Parapsicologia acadêmica, o de se dedicar ao estudo quantitativo de arranjos ‘paranormais’ leva inexoravelmente a essa crítica de Churchland. De fato, do ponto de vista puramente estatístico, em lançamentos sucessivos de uma moeda, há uma chance não nula de que várias faces ‘cara’ apareçam sucessivamente. Isso é um resultado meramente acidental e nada tem a ver com ‘paranormalidade’ a exigir necessariamente uma explicação do tipo 'psicocinése'. Esse ‘ruído’ estatístico deve ser obrigatoriamente suprimido ou isolado se o objetivo for expor, por meio desse método particular, a realidade de eventos paranormais. Trata-se, assim, de mais um escolho ao desenvolvimento da Parapsicologia, que fornece aos críticos muitos argumentos fortes.

5 – Notamos que essa observação crítica de Churchland também vale para qualquer outro fenômeno natural raro e não apenas aos de natureza parapsicológica. Ele representa uma crítica metodológica grave no caso da Parapsicologia, uma vez que o caminho de 'comprovação' escolhido envolve separar o efeito genuíno do ruído estatístico inerente em qualquer tipo de experimentação de múltiplas tentativas.

6 – Nessa classe estão, naturalmente, os fenômenos mediúnicos ostensivos que foram renegados pela corrente acadêmica e experimental da Parapsicologia por representarem eventos anômalos difíceis de serem replicados em laboratório.

7 – Essa simulação de leitura psíquica é, naturalmente, um truque que fornece combustível aos críticos da fenomenologia paranormal, mas que, obviamente, cai na classe das explicações muito fáceis. De fato, qualquer fenômeno natural pode ser imitado por truque e não apenas os fenômenos psíquicos. 

8 – Ver comentário 7.

As referências desse artigo podem ser encontradas em:

Churchland P. M. & Churchland P. S. (1999) On the Contrary, critical Essays, 1987-1997", A Bradford Book, 1st edition.

Referências

Leikind, B. J., and W. J. McCarthy (1985) An investigation of firewalking. The Skeptical Inquirer, 10, no. 1:23-35.

Feyerabend, P. K. (1963b). "How to be a good empiricist-A plea for tolerance in matters epistemological". In Philosophy of science: The Delaware seminar. Vol. 2, edited by B. Baumrin. New York: Interscience Publications, 3-19. Reprinted in Brody B., ed. 1970, Readings. in the philosophy of science. Englewood Cliffs, N.J.: Prentice Hall, 319--42. Also in Morick H., ed. 1972, Challenges to empiricism. Belmont, Calif.: Wadsworth, 164-93.

Leikind, B. J., and W. J. McCarthy (1985) An investigation of firewalking. The Skeptical Inquirer, 10, no. 1:23-35.

Randi, J. (1982) Flim-flam! Psychics, ESP, unicorns, and other delusions. Buffalo, N.Y.: Prometheus Books.








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24 de março de 2013

II - Como a parapsicologia poderia se tornar uma ciência. (P. Churchland)



Numa série de posts, apresentaremos uma tradução comentada do artigo "How Parapsychology could become a science" (Inquiry: An Interdisciplinary Journal of Philosophy, Volume 30, Issue 3, 1987) do filósofo Paul Churchland. Este artigo é uma crítica epistemológica bem embasada à parapsicologia, crítica que deveria ser seriamente considerada pelos praticantes dessa disciplina, se eles pretendem, de fato, fazê-la avançar. Alem disso, Churchland lança dúvidas bem fundamentadas sobre o paradigma materialista presente. Vale a pena estudar com atenção este trabalho. Todas as referências dele serão apresentadas no último post. O texto em azul é do artigo.

Continuação de 'I - O argumento da tolerância'.

A "teoria predileta" desta história é a teoria clássica do calor e energia, que tem como princípio central que todas as interações mecânicas envolvem ao menos a conversão de energia mecânica em calor. Isso significa que, qualquer sistema isolado de corpos em movimento deve eventualmente 'parar', assim como ficam em repouso bolas de bilhar em uma mesa de sinuca depois de uma jogada. A energia (mecânica) cinética é dissipada pelo sistema como calor. Todo o ambiente, a borda da mesa, o ar adquirem uma temperatura levemente maior do que a que tinham antes da jogada.

O ponto importante aqui é a generalidade de um princípio chamado 'segunda lei' da termodinâmica clássica. De acordo com esse princípio, qualquer sistema de interações mecânicas, que seja fechado à entrada de energia externa, um catavento, um pêndulo oscilante, um conjunto de bolas de ping-pong colidindo em um caixa, deve eventualmente sempre entrar em repouso.

O fenômeno importante e falsificante dessa estória é o movimento Browniano, descoberto pelo botânico Robert Brown no começo do século 19. O movimento Browniano é a incessante agitação de partículas microscópicas suspensas em água ou ar, tal como espórulos de plantas ou partículas de fumaça. O movimento caótico e aparentemente eterno de tais partículas pode ser visto, e é frequentemente visto, através de um microscópio, mas não foi considerado como tendo qualquer relação com a termodinâmica clássica e a segunda lei. O palpite inicial de Brown para explicar esse movimento quase indetectável apelou para a biologia, afinal os espórulos estão vivos. O movimento igualmente ativo observado com partículas sem vida de fumaça destruíram essa hipótese, sem qualquer ameaça à segunda lei. Quem não poderia dizer que nova energia estivesse continuamente a ser fornecida de alguma fonte microscópica e quem seria capaz de contabilizar de forma precisa a quantidade de energia consumida por tais partículas tão pequenas, ou pelo meio difuso em que elas estavam em suspensão, a fim de calcular se isso estava em desacordo com a teoria clássica do calor? Tais coisas estavam muito além da capacidade de determinação experimental. E, assim, o movimento Browniano permaneceu como um problema menor para os teóricos clássicos, se é que ele fosse sequer notado. A teoria clássica dominava a paisagem como um gigante intocável.


Este vídeo mostra o movimento Browniano através de nanopartículas em suspensão na água. O movimento das partículas é perturbado por colisões com os átomos de água invisíveis. Este fenômeno permaneceu como uma anomalia desprezada pela teoria dominante, a termodinâmica clássica, que previa que as partículas teriam que acabar em repouso depois de certo tempo.

Mas, não por muito tempo. Uma teoria alternativa e razoavelmente geral do calor foi eventualmente desenvolvida por razões que não tinham nada a ver com o movimento Browniano. Essa teoria - a moderna teoria cinética - propôs que o calor nada mais é do que um tipo de energia mecânica, a saber, a energia cinética das moléculas que formam os sólidos comuns, os líquidos e os gases. Elas também estão em movimento, vibrando caoticamente ou oscilando no nível microscópico. A temperatura de um corpo foi interpretada como sendo apenas uma medida de quão vigorosamente as moléculas constituintes estão se movendo. E a 'conversão' inevitável da energia cinética no nível macroscópico em calor, que é um tema recorrente na segunda lei clássica, nada mais seria do que uma distribuição dessa energia do nível macro para o micro. Uma bola pulando eventualmente para porque as moléculas do ar ou do chão levam embora partes pequenas dessa energia cinética que estava tão organizada inicialmente no  movimento coerente do pular. A bola agora está em repouso, mas ligeiramente mais quente, assim como o chão e o ar circundante. A energia original da bola agora vive na forma de um aumento da atividade das moléculas constituintes, tanto do ar como do chão. 

Mas, o que dizer sobre as próprias moléculas em movimento? Elas não dissipariam sua energia cinética, à medida que colidem umas com as outras, assim como no caso da bola? Será que elas não terminariam também em repouso, mas ligeiramente mais quentes? Não, assim prediz a teoria cinética. As interações entre as moléculas são perfeitamente elásticas, o que é uma outra forma de dizer que nenhuma energia é perdida em qualquer interação entre elas. Dessa forma, as partículas permanecem colidindo entre si felizes para sempre. As moléculas não podem dissipar suas energias cinéticas na forma de calor, porque o movimento delas já é o que se chama calor. Um sistema fechado de moléculas em colisão, portanto, nunca estará em repouso.


Essa teoria não foi bem recebida pela maioria por uma razão fácil de se entender. Por um lado, ela postulava a existência de partículas que, por causa de seu tamanho, jamais seriam observadas pelos humanos. Por outro lado, essas partículas inerentemente 'tímidas' eram admitidas como realizando colisões elásticas entre si, em contradição direta com o princípio bem estabelecido da segunda lei. Na aparência, essa era uma proposta metodologicamente suspeita e improvável como fato.
Animação em computador do estado de agitação molecular. Para uma nova teoria (a cinética dos gases), o calor nada mais é do que uma manifestação microscópica do movimento de átomos e moléculas, que fornecia uma explicação alternativa à da termodinâmica clássica. Essa manifestação invisível de mudança tem consequências indiretas que podem ser observadas empiricamente. Cortesia Wikipedia.
Como testar essa teoria nova sobre a natureza do calor? Há muitas formas, mas discutiremos apenas uma delas aqui.  Moléculas são muito pequenas para serem vistas, mesmo com um microscópio, então não havia esperança de se ver diretamente se um gás aquecido era composto de moléculas em movimento incessante. Mas, se suspendermos partículas em um gás, partículas tão pequenas que pudessem ser afetadas de todos os lados pelo movimento das próprias moléculas de gás, mas grandes o suficiente para serem vistas ao menos com um microscópio, então o movimento incessante das moléculas será revelado pela dança incessante das partículas suspensas nele. Ou seja, se a teoria cinética é verdadeira, o movimento Browniano deveria existir! Além disso, a violência do movimento observado deve ser proporcional à temperatura absoluta do gás (quanto mais rápido as moléculas se movem, tanto mais rápido se moverão as partículas). E, mais ainda, a teoria cinética fez previsões sobre a distribuição de partículas de fumaça por causa da gravidade e da temperatura e resultou também num bom acordo com a lei clássica dos gases. Mas, não precisamos detalhar isso aqui mais. É suficiente dizer que todas essas predições são experimentalmente acessíveis e todas foram corroboradas em detalhes. 

Dessa forma, uma curiosidade menor, de relevância duvidosa para qualquer coisa, surgiu como um grande fenômeno que revelou um aspecto oculto tanto da matéria como do calor e se constituiu numa refutação permanente da segunda lei. Mas, isso aconteceu somente porque uma nova teoria nos mostrou uma maneira diferente de se pensar as coisas. Tivéssemos permanecido cristalizados nas categorias e imagens da teoria clássica, o significado do movimento Browniano jamais teria sido compreendido.  

A moral dessa história é que devemos sempre ser tolerantes com a proliferação de pontos de vista teóricos diferentes. Na verdade, devemos ativamente encorajar isso, mesmo se nossas teorias prediletas presentes não sofrerem nenhum problema empírico (1). Isso não significa que devemos abandonar teorias de sucesso ou programas de pesquisa produtivos a fim de seguir toda e qualquer ideia maluca que aparecer. Isso seria demonstrar falta de espírito crítico, de irresponsabilidade, além de postura muito ineficiente. Ao invés disso, devemos estar conscientes dos problemas com o monopólio intelectual, não importa quão bem uma teoria tenha sido desenvolvida. E, também, implica que devemos sempre estar abertos a tentativas de articular e explorar alternativas conceituais interessantes.   

Comentários


(1) Embora essa seja uma recomendação que faz sentido, na prática, a maior parte do tempo dos cientistas é gasto no desenvolvimento do paradigma principal. O paradigma confere estabilidade e permite resolver problemas, que é uma preocupação central no labor científico. A construção de alternativas teóricas - embora recomendado pela proposta de Feyerabend - é, muitas vezes, não intuitiva no contexto da prática científica.

Continua no próximo post: parte II - Parapsicologia, o lado teórico.

13 de março de 2013

I - Como a Parapsicologia poderia se tornar uma ciência. (P. Churchland)


Numa série de posts, apresentaremos uma tradução comentada do artigo "How Parapsychology could become a science" (Inquiry: An Interdisciplinary Journal of Philosophy, Volume 30, Issue 3, 1987) do filósofo Paul Churchland. Este artigo é uma crítica epistemológica bem embasada à parapsicologia, crítica que deveria ser seriamente considerada pelos praticantes dessa disciplina, se eles pretendem, de fato, fazê-la avançar. Alem disso, Churchland lança dúvidas bem fundamentadas sobre o paradigma materialista presente. Vale a pena estudar com atenção este trabalho. Todas as referências dele serão apresentadas no último post. O texto em azul é o do artigo.

Resumo
Um argumento metodológico importante é desenvolvido em apoio a um desafio teórico geral ao paradigma materialista dominante. A ideia é que as inadequações empíricas da teoria dominante podem estar ocultas da  vista por vários fatores e emergirão das sombras somente quando vistas da perspectiva de uma alternativa conceitual sistemática. A questão que se coloca, então, é se a parapsicologia fornece essa alternativa conceitual adequada à tarefa. Nossa conclusão provisória é que ela não fornece. Algumas outras consequências são tiradas disso, no que diz respeito à face experimental da tradição parapsicológica.
O título do trabalho corre o risco de me desmascarar, mas nem tanto. A parapsicologia, como praticada presentemente, não parece a mim ser uma ciência genuína  Ou, mais precisamente, desde que essas coisas são uma questão de grau, ela parece demonstrar um teor excessivamente baixo de atividade científica, o que justifica a indiferença e o ceticismo que ela encontra no resto da comunidade científica. Por outro lado, acho também que ela poderia se tornar uma ciência respeitável. Pretendo explorar aqui como isso seria possível. 

1. O argumento da tolerância

Minha abordagem inicial a essa questão vem do ponto de vista de um materialista. Quer dizer, sou profundamente tocado pela sucesso empírico extraordinário de várias ciências físicas, da física subatômica a bioquímica, biologia evolucionista, neurociências, astronomia, cosmologia e história natural. O sucesso sistemático e inter relacionado dessas ciências nos incita a levar muito seriamente a hipótese de que todos os fenômenos no Universo, sem exceção, se devem à articulação intricada de um a grande quantidade de elementos físicos e relativamente pequenos que agem de acordo com um conjunto limitado de leis puramente físicas (1)

Em particular, parece me bem provável que todos os fenômenos decorrentes de criaturas que têm sentimentos são outro exemplo de articulação de propriedades da matéria governada por leis físicas. Somos evidentemente feitos de matéria. Evoluímos por uma processo puramente físico, embora complexo, de organismos primitivos e simples, também feitos de matéria, organismos cuja linhagem nos leva a uma sopa primordial puramente química. Nossas atividades sensoriais, cognitivas e motoras, tanto quanto as compreendemos, são outra mistura de acontecimentos químicos, elétricos e mecânicos. A força desse arcabouço conceitual é uma das razões principais porque a grande maioria dos cientistas consideram impossíveis as afirmações sobre os 'fenômenos psíquicos', pois tais ocorrências são incompatíveis com o ponto de vista materialista bem estabelecido do Universo e do nosso lugar nele (2).

Por outro lado, parece provável também que esse ponto de vista pode estar errado. Seu sucesso explicativo até o presente, não importa o quão generalizado ele seja, não garante sua verdade. Outros paradigmas, em outros momentos históricos, também gozaram de domínio semelhante sobre grande parte da experiência humana e, mesmo assim, se mostraram falsos (3). A hegemonia organísmica de Aristóteles vem a minha mente aqui. Nesse caso, foi bem essa compreensão de visão de mundo abrangente que nos cegou para muitas particularidades que surgiram depois, sob inspeção mais detalhada. Talvez o materialismo moderno nos cegue de igual forma. E, quem sabe, a pesquisa  que é conduzida sob a bandeira da parapsicologia seja bem o tipo de coisa que nos irá libertar dele.

O quão possível isso é nós discutiremos oportunamente. Teremos que ponderar o sucesso sistemático das ciências físicas contra as afirmações de parapsicologistas que insistem que existe uma variedade de resultados experimentais que não podem ser explicados em termos dessas ciências. Evitarei essas questões empíricas em algumas páginas à frente, uma vez que existe um argumento puramente metodológico que pode ser levantado em apoio à pesquisa parapsicológica, não importa o quão forte sejam as evidências que sustentem, por sua vez, o materialismo.
Paul Feyerabend (1924-1994)

O argumento vem de Paul Feyerabend (1963b) e não tem nada a ver com as virtudes ou vícios da parapsicologia. Feyerabend chama a atenção ao fato de que, muitas vezes, a única forma de descobrir as inadequações verdadeiramente empíricas de uma teoria bem estabelecida é construir teorias alternativas que forneçam novas interpretações para dados experimentais familiares e velhos conhecidos (4). Qualquer teoria de sucesso sempre ignora ou suprime uma grande quantidade de evidências empíricas problemáticas e fracas, que são consideradas irrelevantes ou ‘ruído’ inevitável. Nenhuma teoria jamais ajustará todos os dados experimentais perfeitamente, uma vez que as situações experimentais que a testam sempre trazem consigo um horizonte de detalhes sutis além do qual não temos nem conhecimento e nem controle (5). Além desse horizonte, estão os elementos inevitáveis que são ou muito pequenos, ou muito complexos ou por demais inacessíveis para que se exerça domínio ou controle. Pequenas discrepâncias entre a teoria favorita e os resultados experimentais são, portanto, frequentemente considerados como atividade ruidosa produzida por fatores além do horizonte do que é controlável.

Não existe erro nisso. A alternativa é tentar controlar a posição e o aspecto de cada partícula no Universo. Ao invés disso, tentamos controlar o quanto acreditamos ser necessário e prudente controlar, e deixamos todo o resto ser como é. E, aquelas áreas experimentais onde não temos esperanças de exercer controle nos detalhes que acreditamos como relevantes, simplesmente as ignoramos como intratáveis ou desinteressantes. A teoria favorita pode não explicá-los, mas essa deficiência não é considerada um problema sério (6). 

Pode ser possível, porém, que os fatos empíricos importantes que refletem a falsidade da teoria favorita e 'de sucesso' seja encontrado justamente nas áreas experimentais que se imaginou serem intratáveis ou além do horizonte dos detalhes controláveis da área considerada tratável. Nesses casos, a teoria favorita goza de uma segurança por exercício de refutação imerecida. Os fatos refutantes estão lá, mas por razões complexas, eles são difíceis ou impossíveis de serem percebidas (7), pelo menos enquanto continuarmos a interpretar a situação em ternos da teoria predileta. Pois, essa é a teoria que nos ajuda a decidir que detalhes são relevantes e quais são irrelevantes, além de separar as situações que são tratáveis daquelas que não não.

A melhor maneira de sair dessa situação, sugere Feyerabend, é construir uma teoria alternativa comparativamente geral com a qual produziríamos novas interpretações para os dados experimentais, ou que nos diria quais são os detalhes relevantes e quais não são, ou quais situações são tratáveis diante de outras consideradas intratáveis (8).  Isso tem o efeito de destacar certos detalhes que, até então, tinham sido desprezados, de revelar novos sinais a partir do que se considerava  ruído ordinário, de se descobrir  ordem onde antes só se via o caos. Em particular, essa visão reconfigurada pode revelar falhas dramáticas na velha teoria, falhas que eram invisíveis com falhas desde a perspectiva anterior.

Feyerabend fornece um exemplo interessante desse fenômeno, que vale a pena sumarizar aqui. O leitor deve me perdoar se simplifico demais a física a fim de destacar esse ponto metodológico.

Continua no próximo post (todas as referências serão apresentadas no último post).

Comentários

(1) O argumento colocado por Churchland é irretocável. O materialismo ainda é a 'teoria predileta' por causa de uma grande variedades de fenômenos que podem ser explicados de forma muito satisfatória com ele. Isso sanciona seus princípios e permite que a ciência avance na explicação de outros fenômenos;

(2) Churchland aponta aqui a principal razão para o ceticismo com relação aos fenômenos anômalos, que não são completamente explicados pela teoria dominante.

(3) Novamente a argumentação é bastante lógica. Ainda que esse paradigma dominante tenha experimentado um sucesso impressionante, não segue disso que ele seja verdadeiro. Além da teoria aristotélica citada pelo autor, há outros exemplos históricos interessantes de teorias que foram altamente consideradas no passado e que se mostraram errôneas.

(4) Isso acontece porque é a teoria que orienta o processo de pesquisa científica. Se a teoria não crê nessa ou naquela possibilidade, ela não será procurada em lugar algum - o que implica que os métodos de pesquisa não poderão ser orientados na direção de sua demonstração.

(5) Essa afirmação extremamente forte de Churchland reflete a realidade de que não podemos saber  tudo no mundo: há um limite para o conhecimento humano que vai até o 'horizonte' além do qual estão as aproximações e os fatores incontroláveis ou desconhecidos.

(6) Ainda que estejamos cientes de que nossa teoria predileta tem limitações, não iremos jogá-la fora por causa de qualquer detalhe menor, que deve ser desprezado, para que possamos 'salvar' a grande imagem que nossa teoria é capaz de demonstrar com sucesso.

(7) As ciências dos fenômenos psíquicos estão repletas de 'razões complexas' que tornam difícil ou impossível que se percebam os novos fatos. De certa forma, a fonte dessa dificuldade está na própria influência do paradigma predileto que separa claramente quais os fenômenos que merecem atenção daqueles que são apenas 'ruído'.

(8) Trata-se do princípio da 'contra-indução' proposto por Feyerabend. Esse filósofo buscou demonstrar que a melhor forma de fazer avançar a ciência não seria por 'indução', mas por 'contra-indução' que, grosseiramente, implica em se construir teorias alternativas para fenômenos conhecidos (sem abandonar a teoria predileta), e ver se, de fato, há outra maneira de se explicar os mesmos fenômenos com o ganho adicional de tratamento de outros aspectos desprezados pela teoria principal.