29 de janeiro de 2011

Fundamentos III - Como se deve entender a relação entre o Espiritismo e a Ciência.

A tarefa agora é começar a entender como se estabelece a relação entre o Espiritismo e as ciências. Certamente, não será objetivo do Espiritismo competir com esses ramos de atividade humana. Por isso, não é tarefa do Espiritismo fornecer explicações alternativas ou desenvolver o núcleo principal das ciências com as quais o Espiritismo faz fronteira. Não se deve esquecer que o Espiritismo como movimento é uma realização humana. O cientista que é espírita – se trabalha profissionalmente com alguma dessas áreas correlatas – tem seus próprios meios e procedimentos, advindos do estudo adquirido de sua atividade. Como faz parte do processo de desenvolvimento da ciência normal, ele pode (e deve) utilizar os meios a sua volta (inclusive sua própria cultura) para fazer desenvolver sua ciência conforme suas regras próprias. Como dissemos, a ciência não faz caso da origem do conhecimento, o importante é que esse se organize como um paradigma bem estruturado, coerente e naturalmente integrado aos fenômenos. Trazemos abaixo alguns breves comentários das regiões de fronteira entre a Doutrina Espírita e as ciências, enfatizando alguns pontos que nos parecem interessantes:

Espiritismo X Astronomia: é bem conhecida as descrições da origem do sistema solar (nebulosa primordial) existente no livro “Gênese” [2] de Allan Kardec. O capítulo VI de “Gênese” também fala de inúmeras galáxias (denominadas “nebulosas” – entendidas como agrupamentos de bilhões de estrelas como a “Via-Láctea”) numa época em que não se havia certeza desse fato. Há relatos de comunicações de Espíritos anunciando a existência de satélites desconhecidos em outros planetas. Além disso, o Espiritismo parece ter se antecipado às discussões que deram origem à exobiologia, que foi proposta para estudar a possibilidade de vida em outros planetas. É interessante observar que, uma vez classificada como um planeta qualquer, a Terra passou a ser vista como um dos muitos planetas a ter vida inteligente no Universo (algo muito difícil de se acreditar no século 19). O Espiritismo prevê abertamente, pelo princípio da “pluralidade dos mundos habitados”, a existência de vida inteligente fora da Terra (ainda a ser verificada pelos métodos normais – contato físico). Antes disso, porém, previu a existência de inúmeros planetas orbitando as estrelas, um fato que se tornou tema de pesquisa contemporâneo, graças ao desenvolvimento de novos métodos de observação muito mais precisos. Muitos planetas foram encontrados a partir de 1990 em torno de estrelas próximas.

Espiritismo X Física: aqui deparamo-nos com algumas afirmações feitas em “O Livro dos Espíritos” que parecem ter antevisto a modificação radical por que passaria a física a partir do século 20. Os Espíritos falaram em uma forma que “que não sois capazes de apreciar” [4] a respeito da estrutura dos átomos (uma alusão às “nuvens de probabilidade” dos elétrons?) num contexto bastante diferente para a física da época. Considerações sobre a origem do Universo são feitas no começo de “O Livro dos Espíritos”, levando o Espiritismo para a fronteira com a cosmologia. É preciso, porém, ter cautela em se tratar a questão inversa: a da influência da física no Espiritismo. Muitos falam abertamente nas diversas “energias” que constituem o mundo espiritual, esquecendo-se que “energia” é um conceito muito bem definido em física e que não admite reinterpretações dessa forma [5]. Outros levantam a possibilidade de entender o próprio mundo espiritual como um “contínuo quadridimensional” do mundo físico. Para se utilizar conceitos e sugestões advindos do Espiritismo na física, faz-se necessário grande competência em física uma vez que os núcleos das teorias (tanto do lado espírita como material) possui certa resistência a mudanças, além de estar fundamentado em teorias profundamente matemáticas. Por isso mesmo, tentativas de modificação de conceitos por sugestão de ambos os lados (de um lado para outro) são muito duvidosas no que diz respeito a qualquer avanço significativo no conhecimento. É importante também considerar as questões de diferença de linguagem (significado de termos e conceitos dentro de cada teoria particular) quando essa linguagem tenta conectar um fenômeno supostamente descritível tanto pela física como pelo Espiritismo. Minha impressão particular é que o grau de especificidade atingido pela física (especialização na forma de pulverização de campos de compentência) torna pouco viável qualquer tentativa “fácil” de interação.

Espiritismo X Biologia (medicina): aqui a fronteira torna-se um pouco mais nítida. Em “O Livro dos Espíritos” [6], existem muitas questões a respeito da origem dos seres vivos. É também na “Gênese” que existe um famoso capítulo sobre a gênese orgânica. Naturalmente, esse capítulo faz eco às concepções da época, ainda às voltas com a “teoria da geração espontânea”, então a teoria mais aceita. É no Capítulo XI da II Parte de “O livro dos Espíritos” [3] que vamos encontrar questões cujas perguntas reafirmam a natureza espiritual de todos os seres vivos e sua submissão à lei de progresso. Naturalmente, os mecanismos da evolução das espécies não estão afirmados nesses livros, mas o princípio de evolução espiritual ajusta-se perfeitamente bem aos princípios da seleção natural, representando um mecanismo de modificação que atua na parte material levando o Espírito a se desenvolver. É importante considerar que as discussões sobre a gênese orgânica são complementares para a compreensão da Doutrina e seu desenvolvimento. Por isso esses pontos, assim como muitos outros, sofrem e sofrerão modificação, sem que haja impacto ao corpo principal de doutrina.

Tal não é o caso, porém, com as inúmeras patologias da alma [7] que citamos acima. Nos quadros obsessivos, a ação do Espírito obsessor pode levar ao colapso orgânico do obsidiado. A origem da doença, em sua íntima essência, encontra-se assim descrita através desse quadro de “simbiose espiritual”. É difícil entender como outra teoria – que desconheça a ação dos Espíritos – possa ter um sucesso maior no desenvolvimento de uma terapia apropriada. Aqui se vê claramente a enorme importância dos princípios espíritas no desenvolvimento de certos ramos da medicina pois não se trata apenas de construção ou progressão da ciênica mas do desenvolviemento de terapias apropriadas a inúmeros transtornos mentais.

Espiritismo X História: as contribuições que o Espiritismo pode dar à História são bastante evidentes. Um aspecto bastante inovador surge aqui, que é o de considerar os relatos históricos fornecidos pelos Espíritos, quando por meio de médiums conhecidos. São notórios os casos de médiums que colaboram com investigações policiais na elucidação de crimes. No Brasil a psicografia já ajudou a elucidar vários assassinatos. Com médiums equilibrados, os Espíritos podem fazer revelações úteis ao progresso moral da sociedade e, muitas vezes, essas revelações trazem noticias de relevante valor histórioco (como no caso dos inúmeros romances históricos de Emmanuel por meio de Francisco C. Xavier).

Espiritismo X Psicologia: o Espiritismo tem muito a contribuir com as disciplinas que tem como objetivo de estudo o homem em sua essência. Esse é o caso da Psicologia. Podemos falar em uma psicologia espírita que nasce por “inspiração” dos postulados da doutrina (principalmente de suas conseqüências morais) na maneira de viver, de se comportar e de interagir dos seres humanos. O conhecimento da lei de evolução e reencarnação é crucial para se entender as tendências inatas dos seres humanos que determinam o comportamento, além das limitadas considerações genéticas. Esse certamente é um campo com grande futuro, onde apenas vislumbramos um começo.

Espiritismo X Sociologia: o comportamento social e evolução das sociedades é função de seu desenvolvimento cultural, de seu passado e da maneira de ser de seus indivíduos. Como no caso da História e da Psicologia, o Espiritismo tem muito a contribuir para o estudo e desenvolvimento da história social do homem uma vez que o compreende como Espírito em perene evolução. Há uma interação natural, desde a mais remota antigüidade entre o mundo material e o plano espiritual. Esse fluxo é responsável pelo aparecimento e desenvolvimento de muitas religiões e culturas consideradas “inspiradas”. Dos princípios e informações fornecidos pelos Espíritos, é possível complementar a história de várias sociedades. 

Todos esses campos (assim como outros não listados acima tais como as artes) aguardam um futuro quando o espírita cientista seja capaz de utilizar judiciosamente o seu conhecimento de acordo com as regras estabelecidas por sua ciência particular. O objetivo não é fazer o Espiritismo brilhar para a sociedade como um concorrente das ciências, mas como fonte de inspiração e origem para proposição de novos mecanismos de explicação dos fenômenos e ocorrências características de cada uma delas.

Considerações diferentes dizem respeito à atuação do cientista espírita. Por esse termo referimo-nos àqueles que pretendem desenvolver a ciência espírita a partir de seus princípios ou com a modificação desses, utilizando ideias advindas de outras ciências. É uma conseqüência natural que se pretenda estabelecer um ambiente acadêmico espírita – uma vez verificado o caráter científico do Espiritismo. Mas cautela é necessária para não exagerar demais nas extrapolações. Se o Espiritismo é, de fato, uma ciência, não segue daí que, no nosso momento histórico, ele deva se preocupar com o estabelecimento de um ambiente acadêmico como uma cópia dos ambientes acadêmicos de outras ciências. Todos conhecem os efeitos que a excessiva profissionalização pode trazer em detrimento do fluxo de idéias, gerando estagnação. Imaginamos que no presente momento de desenvolvimento e expansão da Doutrina Espírita não temos um ambiente completamente apropriado à efetiva realização dos objetivos de um ambiente puramente acadêmico. Outras considerações sobre essa questão serão feitas em texto futuro.

3.Alguns comentários finais.

Tentamos limitadamente neste texto discutir algumas idéias sobre o conceito moderno (paradigma) de ciência “normal” – ou ciência amadurecida – e o que seria compreensível como uma salutar relação dessa ciência com o Espiritismo. A aplicação padrão dos procedimentos de construção da ciência leva a plena formação e progresso do conhecimento científico. A tentativa forçada de se estabelecer relações – não sugeridas pelo desenvolvimento científico, mas imaginadas como situações idealizadas – não só conduz a perda de tempo como ao descrédito. Da parte do Espiritismo, tentativas forçadas de querer transcrevê-lo ou moldá-lo segundo normas ou procedimentos de outras ciências pode conduzir à ilusão de falsificação da doutrina, uma vez que o conhecimento científico e sua interpretação é função de um contexto altamente específico e mutante, mas desconexo em relação a ela. Por outro lado, querer misturar conceitos de outras ciências com princípios espíritas não é científico, pois dentro da noção de paradigma cada um deles deve ser entendido dentro de seu contexto de pesquisa (ambientação acadêmica), não se permitindo enxertias ou fusões ainda que muito bem intencionadas.

Aprendamos a ver cada ciência – o Espiritismo entre elas – como linguagens a respeito do mundo. No procedimento de comunicação normal, plena compreensão só é conseguida quando o emissor e o receptor dispõem de bagagem linguística comum. Todo e qualquer procedimento de tradução leva necessariamente a perda de significado pela impossibilidade de se transcrever plenamente determinados conceitos e idéias típicos de um determinado referencial linguístico. O Espiritismo é uma linguagem a respeito do mundo espiritual, criada e desenvolvida para transmitir conceitos sobre esse mundo. As ciências materiais são linguagens distintas que tratam de outro cenário, embora o “palco” apresente áreas comuns ou adjacentes que, no momento, não dispomos de linguagem apropriada para utilizar.

Entretanto, a própria evolução das ciências levará à criação de uma linguagem comum em futuro incerto (talvez ainda distante). Esperamos que, quando esse futuro acontecer, o Espiritismo tenha cumprido em sua totalidade seu papel fundamental, que é o de promover a efetiva reforma moral em todos os Espíritos que dele tiverem se aproximado, buscando consolo e refazimento moral.

Artigo originalmente publicado no boletim do GEAE, número 472 (2004).

Agradecimento

Agradeço ao Alexandre F. da Fonseca pela leitura e comentários a este texto. 

Referências 

[2] A. Kardec, “A Gênese”, Uranografia Geral, o espaço e o tempo (Cap. VI). Ed. Federação Espírita Brasileira, 34a edição (1991).
[3] A. Kardec, “O Livro dos Espíritos”, Trad. Guillon Ribeiro, Ed. Federação Espírita Brasileira, 71a edição (1991).
[4] Referência [3] , questão 34.
[5] A. P. Chagas, Polissemias no Espiritismo, Revista Internacional de Espiritismo, pp. 247-49, Setembro de 1996.
[6] Referência [3], Cap. III.
[7] I. Ferreira, “Novos rumos à medicina”, Vol. I, Tratamento dos processos obsessivos no Sanatório Espírita de Uberaba, Edições Federação Espírita do Estado de São Paulo (1990). 

22 de janeiro de 2011

Fundamentos II - Como se deve entender a relação entre o Espiritismo e a Ciência.

Como dissemos, o sucesso da ciência contemporânea bem estabelecida advém de sua estrutura em paradigmas, onde os fenômenos não têm papel central.  Muitas vezes pode acontecer que uma determinada teoria seja melhor que outra, ao mesmo tempo que ninguém acredite nela. Teorias como realizações mentais ou afirmações sobre o mundo são criadas livremente por um grupo restrito de cientistas (às vezes apenas um indivíduo), e portanto, fazem parte de sua bagagem cultural como crenças. É pela adequação dessas teorias aos fenômenos que elas se tornam aceitas por um grupo maior. O problema é que a definição de experimentos ou a previsão de determinadas ocorrências fenomenológicas depende da teoria. Poderíamos dar inúmeros exemplos dessa situação. Em física – que é uma das ciências costumeiramente consideradas com grande prestígio – é bastante nítido a ocorrência de “previsões experimentais” como resultado direto de teorias sofisticadas onde nada remotamente parecido com o fenômeno em questão tenha entrado como ingrediente. Algumas outras vezes, são feitas previsões de objetos ou circunstâncias nunca observados anteriormente. Essa inversão de papéis, no que tange à importância para o desenvolvimento da Ciência entre teoria e experimento, é a principal causa de confusão tanto no que se refere à compreensão correta da Ciência em si como do aspecto científico do Espiritismo. Conseqüentemente deve-se fazer um esforço para compreender essa inversão, que será útil na discussão da relação entre o Espiritismo e a Ciência. 

A Ciência só tem início com a teoria. Essas podem ter qualquer origem – sejam motivadas por algum acontecimento experimental ou por algum sonho de pesquisador (como no famoso caso do sonho de Kekulé ao conceber o formato dos anéis de carbono no benzeno). A origem do conhecimento científico não é importante para a Ciência. Isto quer dizer que uma determinada teoria não tem valor maior ou menor conforme sua origem, embora muitos cientistas sejam levados a crer ou não nelas de acordo com a força de autoridade de seus proponentes. A partir da proposição da teoria, segue a tentativa de explicação dos fenômenos com ou sem a ajuda de leis complementares que não fazem parte do núcleo principal da teoria. Como um exemplo, podemos considerar o processo de previsão de tempo na meteorologia. As leis que governam os fenômenos meteorológicos são leis físicas, assentadas em princípios térmicos e termodinâmicos. Para prever a situação de tempo com todos os detalhes, pode-se construir modelos numéricos sofisticados onde essas leis estejam embutidas juntamente com “condições de fronteira” específicas tais como a separação entre continentes e mares, o estado inicial de temperatura de uma determinada região, a posição do sol (sua altura em relação ao solo) etc. Essas são as leis complementares. 

Dissemos que a maior parte das pessoas considera a noção popular a própria essência do “método científico”. Isso é particularmente forte nas denominadas “ciências parapsicológicas”, ou o conjunto de disciplinas que tem como objetivo explicar, de maneira supostamente científica, os fenômenos mediúnicos do Espiritismo. Essas disciplinas apresentam escassa discussão teórica, dando enorme ênfase à descrição puramente fenomenológica dos fatos psíquicos. Quando são fornecidas explicações, essas procuram se ligar fortemente aos fenômenos. Dessa forma, é comum a tentativa de explicação simplificada para cada fenômeno. Assim a telepatia é invocada como “hipótese” para explicar as comunicações dos Espíritos, negando-se a existência desses últimos. Ora a “telepatia” é definida simplesmente como a capacidade de transferência de informação entre duas “mentes” (no caso, pessoas). Essa capacidade pode ser constatada de forma experimental. É um fato e não um princípio sobre o qual se possa estabelecer uma explicação. Nas “ciências psi” busca-se dar explicações aos fatos utilizando-se os próprios fatos. Nesse processo, explicações têm a aparência de verdade  pela sua designação por nomes empolados, difíceis de se pronunciar e com nenhum apelo intuitivo. É muito conhecida a frase, dada à guisa de explicação, de que os fenômenos psíquicos se fundamentam nas capacidades desconhecidas do cérebro. Diz-se que os seres humanos normais utilizam apenas “10% da capacidade cerebral”. Ora, qual a base para semelhantes afirmações? Como se mede essa capacidade cerebral? Nas “ciências parapsicológicas” ocorrem falhas  de compreensão dos verdadeiros atributos de uma disciplina para ser denominada ciência. 

Já discutimos muito brevemente que uma verdadeira ciência se constrói utilizando modelos, teorias ou paradigmas. A Fig. 2 ilustra essa “concepção de ciência” mais próxima da realidade. Há um centro irradiador de explicações (a teoria) integrado naturalmente aos fenômenos naturais a respeito dos quais a teoria ou paradigma versa. Leis complementares reforçam a estrutura do paradigma e integram os princípios que fazem parte dele aos fenômenos. Juntamente com essas leis, o paradigma fornece explicações para os fenômenos, inclusive alguns desconhecidos. É possível assim que no corpo teórico que constitui o paradigma, já exista o gérmen para explicação de muitos fenômenos nunca observados. Esse modelo encontra respaldo na história do desenvolvimento de muitas ciências bem sucedidas.

Fig. 2

Também o modelo da Fig. 2 não faz nenhuma referência à necessidade externa de “instrumentos especiais de medida” e nem a métodos supostamente rigorosos de medida experimental, pois a existência desses aparelhos só se justifica pelo paradigma que explica seu funcionamento. É o caso, por exemplo, da utilização de equipamentos ópticos para estudar o movimento dos planetas e outros corpos celestes. A explicação do funcionamento dos equipamentos é fornecida pela óptica, uma área da física, não necessariamente ligada à astronomia ou astrofísica. É possível englobar os princípios da óptica e da mecânica dos corpos em um corpo de teoria comum (no caso a “física”), mas prefere-se mantê-los separados por referirem a domínios fenomenológicos diferentes. Ressaltamos porém que o grau de complexidade desses aparelhos não tem correlação alguma com o rigor com que eles realizam suas medidas. Muito ao contrário, nesse modelo, estimula-se a realização de testes experimentais simples, de observação direta, onde haja pouca influência de fatores de erro a comprometer a realização das medidas. No modelo da Fig. 2 a teoria tem papel fundamental e não o fenômeno. Desde de que se creia e desenvolva a teoria, explicações para os fenômenos irão aparecer. Visto de outra forma, os fenômenos são justificados (explicados) pelo modelo a ponto de só poderem ser percebidos por aqueles que disponham de conhecimento do paradigma. Muitas vezes é possível notar que um mesmo paradigma fornece explicações para inúmeros fenômenos – muitos deles tratados inicialmente como sem correlação alguma com a teoria. Há inúmeros exemplos como esses nas chamadas “ciências normais”, as ciências que se desenvolveram historicamente segundo o modelo “paradigmático” de ciência. Percebe-se que a negação dos fenômenos não traz consequência alguma para a ciência vista nesse sentido pois o paradigma tem papel fundamental. Nesse caso, negar um fato soa profundamente suspeito de falha de compreensão da teoria ou paradigma. Não há também nenhuma preocupação com o grau de comprometimento do cientista com sua crença: pelo contrário admite-se abertamente que ciência é uma atividade onde a criatividade e crença particular do cientista tem uma importância muito grande e benéfica para a ciência. Há, porém, limites para a livre criação, o corpo teórico deve ser interrelacionado e coerente, isto é, seus princípios não devem conflitar entre si. Além disso, a excelência de um determinado paradigma é medida em termos de sua capacidade de explicar os fenômenos a ele ligado e também prever outros. Assim, não basta apenas criar muitas explicações, essas originam-se de princípios mais primitivos e harmônicos, mais ou menos imutáveis. Mas, essa imutabilidade não deve ser entendida com a rigidez dos dogmas.

Entendemos que a parte científica do Espiritismo deve ser entendida no modelo da Fig. 2. Nele os fenômenos são parte secundária e não fundamental da doutrina. A Doutrina Espírita contém o núcleo principal teórico da ciência espírita. Pela utilização de leis complementares, chega-se a explicação dos fatos. No caso dos fenômenos mediúnicos, a existência do perispírito como agente intermediário entre o Espírito e o corpo material é fundamental para compreender a imensa maioria dos fenômenos mediúnicos também denominados psíquicos. Entretanto, a Doutrina Espírita, vista como paradigma com conseqüências mais profundas, toca um conjunto muito mais extenso de fenômenos: fenômenos sociais (principalmente comportamentais), biológicos, históricos, mentais etc. Assim, embora não seja seu objetivo principal, o Espiritismo contribui com muitas áreas do conhecimento, em particular com aquelas que buscam compreender a origem, essência e futuro do homem entendido como uma criatura sem limite no tempo. O Espírito é assim o objeto de estudo da ciência espírita e o paradigma espírita é formado por um conjunto harmônico e mais ou menos fixo de fundamentos. Princípios como a existência de Deus, do espírito como elemento fundamental (além da matéria), da evolução do Espírito e da comunicabilidade entre os Espíritos e os homens (reinterpretados como Espíritos encarnados) são alguns dos princípios fundamentais. Esses princípios juntamente com outros (tal como a busca da felicidade por parte das criaturas) explicam e preveem os fenômenos. Consideremos o caso das doenças mentais. Faz parte desse enorme grupo de patologias (que afetam o comportamento do indivíduo) um grupo não menos importantes de doenças provocadas por influências espirituais – as obsessões em seus mais diferentes graus. Compreender o surgimento dessas doenças, que fornece idealmente a base para um tratamento eficaz, é tarefa simples para o Espiritismo (desde que corretamente aplicado), mas muito difícil para as correntes que negam a existência do Espírito, e que buscam uma explicação puramente material. Já citamos aqui a telepatia. Dentro do paradigma espírita, a comunicação entre Espíritos é um fato bem estabelecido. Em particular, a comunicação entre Espíritos encarnados é uma forma particular dessa capacidade de comunicação. Temos assim uma explicação muito natural (dizemos “intuitiva”) da telepatia. Essa explicação funda-se num princípio muito mais geral que justifica, simples e igualmente bem, a enorme variedade de comunicações ou fatos psíquicos.

3. Como se deve entender a relação entre o Espiritismo e a Ciência.

Depois dessa discussão inicial, fica claro que não se pode falar em uma receita infalível, tal como o sonho de um método rigoroso, para se fazer ciência. Ela é o resultado de uma atividade altamente complexa e integrada no tempo através de grupos de indivíduos formando uma cultura. O Espiritismo, diante das considerações feitas, classifica-se plenamente como uma doutrina científica. Não segue daí que deva adotar o modelo popular de ciência por algumas das falhas que discutimos anteriormente. Essa discussão é importante para os que consideram a Doutrina Espírita, desenvolvida nos livros básicos de Allan Kardec, como conhecimento ultrapassado. Não existe nada mais longe da realidade. Como dissemos, o corpo principal da teoria é protegido com certa rigidez. Modificações no paradigma só acontecem – são conclusivamente admitidos como necessários – se houver razões muito fortes para isso. Tal não é o caso do Espiritismo proposto pelos Espíritos que auxiliaram Kardec. Da mesma forma que negar os fenômenos é sinal de falha na compreensão do paradigma, com muito mais razão, as tentativas de “reforma” do núcleo principal do Espiritismo (invenção de novos princípios em desacordo com aqueles) é sinal forte de falha na compreensão desses princípios. Clamores recentes nesse sentido são assentados em considerações bastante pueris, e deixam entrever uma dificuldade de compreensão do verdadeiro caráter do Espiritismo.

Artigo originalmente publicado no boletim do GEAE, número 472 (2004).