27 de outubro de 2011

Pragmática e intenção nas cartas psicografadas de Chico Xavier.

Psicografia em Italiano, F. C. Xavier.
Este post contém um artigo submetido à revista 'Reformador' da Federação Espírita Brasileira em 7/fev/2011 que teve publicação recusada em 8/set/2011.

De forma bastante simplificada, um processo de comunicação é um conjunto de etapas que leva uma mensagem de um emissor a um receptor. Esse é a imagem popular de um processo ou mecanismo de comunicação, e podemos denominá-la de modelos de ‘transferência de informação’. Entretanto, ela é severamente limitada, embora pareça dar conta do processo de comunicação na maioria dos casos, principalmente com sistemas eletrônicos ou meios outros meios de comunicação (exemplos vão desde sinais de fumaça, telégrafos até o telefone). Em tempos recentes, boa parte da pesquisa sobre o processo de comunicação é desenvolvida através de várias teorias linguísticas, embora outras áreas de pesquisa (como a semiótica) tenham como objeto de estudo a comunicação não baseada na linguagem dos seres humanos, inclusive desenvolvendo modelos para comunicação entre seres vivos (plantas, animais etc). Modernas teorias linguísticas buscam explicar aspectos do processo de comunicação que não podem ser explicados pelos modelos simples de transferência de informação. Um processo eficiente de comunicação não é aquele em que partes ou pedaços de informação são transferidos para o recipiente e este, por sua vez, vai montando um quadro ou interpretação que é proporcional à quantidade de mensagens transmitidas. Há vários níveis ‘hierárquicos’ de informação dentro de uma mensagem e, para se ter uma ideia limitada desses níveis, é suficiente considerar a linguagem escrita.

Um texto escrito de próprio punho por alguém (emissor) a um seu conhecido (receptor) é um exemplo rico para os vários níveis de sinais linguísticos que se interrelacionam dinamicamente formando uma mensagem que só pode ser convenientemente compreendida pelo receptor. O primeiro nível existente é o da morfologia, afinal, se a mensagem é enviada pelo emissor, ela contém sinais grafados que o identificam univocamente. Uma vez ‘transcrita’ a mensagem em um meio que é independente da morfologia, aparecem então tipos de sinais que revelam outros níveis hierárquicos: a sintaxe (ou, que diz respeito ao cumprimento de regras próprias do idioma em que a mensagem é grafada) e a semântica (ou, que diz respeito ao significado das palavras e frases contidas no texto). Se a relação entre o emissor e o receptor sempre se deu, por exemplo, utilizando a língua portuguesa, então é natural que a sintaxe obedecida será a do português. No que diz respeito à semântica, o significado das palavras e grupos de palavras formando frases inteiras pode ser feito tanto se respeitando a regra (o chamado léxico) comum ou não. É muito comum que, entre grupos privados, regras semânticas particulares sejam utilizadas. Nesse caso, qualquer análise externa que pretenda inferir um significado ao texto escrito sem o conhecimento de um léxico particular é severamente limitada. Se esse léxico não está disponível em parte alguma, não é possível codificar corretamente o significado do texto, por mais que nos esforcemos. Um exemplo comum de problemas desse tipo é a tentativa de grupos dogmáticos cristãos em interpretar literalmente passagens ou textos inteiros do Velho e do Novo Testamento.

Há, entretanto, um último nível na hierarquia de sinais de comunicação que está muitas vezes oculto na mensagem: o da pragmática. Além do sentido aparente dado pela semântica, a mensagem do emissor é gerada de forma tal que apenas o receptor está completamente capacitado para compreendê-la. Por exemplo, se meu amigo, morando na Austrália, escreve a mim (receptor) uma carta contando das inúmeras belezas naturais daquele continente, seu objetivo pode ser apenas remover meus receios presentes de fazer uma visita a ele. Afinal, apenas ele sabe que eu não tenho o menor interesse em visitá-lo. Qualquer outra pessoa, ao ler a mesma carta, vai pensar que meu amigo apenas está empolgado com as belezas naturais daquele país. Embora morfologia, sintaxe e semântica sejam visíveis para todos (ou seja, são níveis de conhecimento linguístico disponíveis publicamente), o nível pragmático não é. Em todo o processo de comunicação, competência pragmática deve existir por parte do emissor para que o processo seja realmente eficiente. Isso é possível porque uma comunicação verdadeira só ocorre entre emissor e receptor que compartilham crenças anteriormente adquiridas.

Em paralelo com a questão da pragmática nas mensagens, há ainda questões ligadas à finalidade ou objetivo do texto que denominamos de ‘intenção’. Afinal pode ser que, dentre os inúmeros objetivos do emissor com o texto, o menor deles é o de comunicar alguma coisa. Mensagens podem ter como objetivo provocar determinadas impressões no receptor. Um exemplo interessante é o do indivíduo que chega a um posto de gasolina com seu carro e um pneu furado. Ele então fala para o primeiro funcionário do posto: ‘o pneu furou’ e aponta para o problema. Essa mensagem não tem como objetivo dizer que o pneu foi avariado, mas fazer com que o receptor faça alguma coisa diante da necessidade de se trocar o pneu. Fala-se assim no problema da ‘subdeterminação da intenção comunicativa’, na presença de expressões ‘semanticamente mal definidas’ e nos ‘atos não comunicativos’ (Bach, 1979), todos eles representando aspectos privados do processo.

É um exercício interessante analisar e encontrar cada um dos níveis de hirarquia de sinais de comunicação nas cartas psicografadas por Chico Xavier. Cada um deles, morfologia, sintaxe, semântica, pragmática e intenção aparecem vividamente em diversas cartas, embora não extensivamente em todas ao mesmo tempo. Isso revela aspectos ocultos do processo de comunicação mediúnico que está de pleno acordo com a expectativa de interferência, e que ainda não são bem compreendidos. Ao contrário do que se pode pensar, a presença de interferência por parte do médium nas psicografias é uma evidência forte de processo de comunicação, uma vez que nenhum sistema de comunicação está imune a interferências. Existe interferência em cada um dos aspectos do processo, embora, para alguns deles, ela é menos extensiva. Quanto maior o nível considerado, menor a interferência por parte do médium. Reciprocamente, quanto maior esse nível tanto mais privada é a manifestação do nível (ver Figura abaixo).  

A pragmática e a intenção nas cartas estão diretamente ligadas a forte impressão causada aos parentes dos comunicantes que foram chamados a ‘decodificar’ o conteúdo, justamente pela presença de elementos que não estão publicamente disponíveis. É necessário reconhecer que, para que a estratégia do emissor tenha qualquer sucesso, um conjunto de crenças deve ser compartilhado entre o emissor e o receptor e que essas crenças não estão disponíveis antes (ou depois) do ato mediúnico. Se comunicar-se não é apenas ‘transportar’ informação, as cartas psicografadas por Chico Xavier (nosso exemplo mais notório) só podem ser explicadas se o médium teve ajuda explícita do emissor para escrever cada uma delas. O emissor (Espírito) é o agente que detém completamente a competência pragmática e a intenção, enquanto que o médium é o intermediário, interferindo ainda como fonte de ruído irredutível no processo que se manifesta nos níveis inferiores. Embora os aspectos mais superiores da pragmática e da intenção sejam os menos imunes à ação de ruído (interferência) pela mente do médium, são igualmente notáveis as comunicações ‘xenográficas’, ou escritas em uma sintaxe (e semântica) diferente da conhecida pelo médium, que demonstram que o Espírito tem o controle sobre níveis inferiores, além dos superiores. Esse é o melhor modelo para se explicar os fenômenos e os dados oriundos das cartas psicografadas. De acordo com esse modelo simplificado de comunicação, é compreensível também que o caráter ‘automático’ ou ‘mecânico’ da comunicação é tanto maior quanto mais completo deva ser o processo de comunicação nos vários níveis em que ele se manifesta. 

Nosso esforço aqui é parte de uma iniciativa que resultou em um pequeno texto sobre a aplicação das modernas teorias da linguagem e comunicação aos dados que se obtém das cartas psicografadas por Chico Xavier e que foi publicada na revista ‘Paranthropology’ (Xavier, 2010). Essa análise pode também ser aplicada a produções psicográficas de outros médiuns. Mais importante do que isso, ela revela que os aspectos justamente ‘não públicos’ são os mais importantes na caracterização e identificação do emissor. Não é possível explicar o conteúdo pragmático invocando-se aquisição de conhecimento por parte do médium ou mesmo simples emulação. Os detalhes pragmáticos e intencionais dependem de uma quantidade grande de conhecimento que é compartilhado historicamente entre o emissor (Espírito) e seus familiares (receptores) e que não estão disponíveis publicamente e que não se podem armazenar. Mesmo alguns aspectos públicos (como a semântica) dependem de conteúdo privado, principalmente quando o emissor intencionalmente faz uso de palavras com significado diferente do usual.

Esperamos que novas pesquisas sejam dirigidas ao estudo dos vários níveis que caracterizam uma comunicação mediúnica efetiva além de outros aspectos. Parte disso já tem acontecido, como um estudo recente sobre o papel das citações (Rocha, 2010) nos textos psicografados. Tais estudos descobriram textos desconhecidos de Humberto de Campos citados por ele em Espírito. Esse estudo não é apenas importante para caracterizar os vários níveis encontrados nas mensagens e, assim, responder a questionamentos céticos, mas também para formar uma imagem mais precisa do processo psicográfico em si. Em particular eles podem revelar detalhes sobre como se dá a interação entre a mente do médium e a do emissor a fim de que o processo de comunicação seja o mais transparente possível.

Referências
  • Arantes H. M. C & Xavier F. C. O conteúdo das cartas foi publicado em várias obras publicados pela Editora do Instituto de Difusão de Araras e GEEM (ver, por exemplo, Ramacciotti C. & Xavier F. C. (1975), Jovens no Além).
  • Bach K. & Harnish R. M. (1979), Linguistic communication and speech acts, Cambridge Mass: MIT Press.
  • Grumbach C., Gentile L. A. & Pelele P. P. (2010), As cartas psicografadas de Chico Xavier, Crisis Produtivas and Ciclorama Filmes.
  • Rocha, A. C. (2010). Uma estratégia para a construção autoral na psicografia: as citações. A Temática Espírita na Pesquisa Contemporânea, textos selecionados. Editado por CCDPE-ECM. 
  • Xavier A. (2010). ‘Pragmatic and intention in automatic writtings: the Chico Xavier case’, Paranthropology, vol II, Numero 1, p 47-51. Disponível publicamente em http://paranthropology.weebly.com/
Ver também: Cartas psicografadas neste blog em 3 partes.



22 de outubro de 2011

Memória Genética e Reencarnação

Cada da revista 'Espiritismo & Ciência' (número 90), 
com texto de nossa autoria . Editado pela Mythos.

Seções do artigo

1 - Introdução;
2 - Memória Genética e Eugenia;
3 - Consequências da tese da memória genética para a visão espiritualista do ser humano;
4 - Qual é a situação atual?

5 - Considerações finais.
Agradecimentos
Referências

Descrição

A matéria de capa da revista Espiritismo & Ciência 90 fala sobre memória genética e reencarnação. Esse conceito de memória genética refere-se à suposta capacidade de herdarmos não apenas memórias dos antepassados, mas também suas personalidades. Ele tem sido utilizado para tentar refutar o conceito de reencarnação, mas sem sucesso. A matéria é assinada pelo físico Ademir Xavier. Os passarinhos do bem de Marcio Baraldi, os Vapt&Vupt continuam firmes com suas mensagens de paz e reflexão. A edição também traz comentários e sinopses de livros espíritas, para você escolher sua leitura preferida. José Sola continua com a série de textos a respeito dos livros de Chico Xavier, agora com a obra Há 2000 Anos, uma das mais populares escritas pelo Espírito Emmanuel. Na seção "Desmistificando o Dogma da Reencarnação", o doutor Wladimyr Sanchez responde perguntas dos leitores, aqui com uma longa explanação sobre o conceito de reencarnação que surge no livro Missionários da Luz, de André Luiz. Paulo Neto traz um interessante texto explicando qual a primeira obra espírita que deve ser lida, baseando em informações fornecidas pelo próprio Alan Kardec. Carlos e Carmen Imbassahy abordam as pesquisas científicas que permitem dizer-se que o universo não é criação do Deus religioso que conhecemos. No texto de Rogério Coelho, você poderá ler a respeito da relação entre ciência e religião, a partir do ponto de vista de Allan Kardec e de Joanna de Ângelis.

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