17 de abril de 2013

Experimentum crucis: EQMs em pessoas cegas


"No Espírito, a faculdade de ver é uma propriedade inerente à sua natureza e que reside em todo o seu ser, como a luz reside em todas as partes de um corpo luminoso. É uma espécie de lucidez universal que se estende a tudo, que abrange simultaneamente o espaço, os tempos e as coisas, lucidez para a qual não há trevas, nem obstáculos materiais. Compreende-se que deva ser assim. No homem, a visão se dá pelo funcionamento de um órgão que a luz impressiona." (A. Kardec, comentário à questão #247 de "O Livro dos Espíritos". Foto: nossa homenagem a Dorina Nowill, 1919-2010)

É uma consequência natural da tese da sobrevivência que o ser humano deve possuir um outro corpo, de natureza diferente daquele conhecido. Nesse corpo residem verdadeiramente os sentidos, embora, na condição de "encarnado", os estímulos externos cheguem a ele por meio dos sensores de seu corpo material. Na ocorrência da morte, readquire o segundo corpo sua independência, ressurge o Espírito na posse de todos os seus sentidos originais.

Portanto, espera-se que, se determinadas condições especiais acontecerem, o Espírito encarnado, cujo sentido físico seja inexistente ou tenha sido severamente limitado durante sua vida normal, possa readquiri-lo em sua forma espiritual. Essa é uma previsão natural da tese da sobrevivência, uma previsão do paradigma espírita.

Por outro lado, para o reducionismo fisicalista ou materialismo, as experiências cognitivas estão totalmente atreladas aos estímulos externos recebidos. Portanto, não se espera que ocorram experiências cognitivas correspondentes àquelas ligadas à objetos inspecionados através de sentidos inexistentes (se eu, por exemplo, nunca vi um coelho, como posso sonhar ou imaginar ter visto um?). Surge aqui uma oportunidade para um "experimentum crucis" (1) porque, por lógica, cegos de nascença jamais poderiam descrever visões ou surdos de nascença jamais poderiam ouvir vozes. Mas, isso é justamente o que ocorre durante as chamadas EQMs (experiências de quase morte, 2). Nesses casos, torna-se um verdadeiro absurdo acreditar na tese da alucinação: como poderia alguém que nunca experimentou a visão, relatar experiências complexas relacionadas a ele? O absurdo é ainda maior ao se considerar que tais relatos ocorrem durante curtos períodos de tempo em que os pacientes são considerados "clinicamente mortos".

Alguns casos

Um trabalho de grande importância foi publicado em 1997 de autoria de Kenneth Ring e Sharon Cooper  (3) relatando, pela primeira vez de forma sistemática, diversos casos de experiências de quase-morte em cegos de nascença. A conclusão dos autores é que não existem diferenças de descrição na percepção com indivíduos, sejam eles cegos ou não, quanto ao conteúdo da experiência. No caso de cegos de nascença, há um momento na experiência em que eles começam a enxergar e tem visões complexas que se assemelham à das pessoas não cegas. O artigo de Ring e Cooper traz em detalhes dois casos, o de Vicki Umipeg e Brad Barrows. O caso de Vicki, cega de nascença vitimada por nascimento prematuro e excesso de oxigênio na incubaroda na década dee 1950, é interessante, por ter ela passado por duas EQM. Na última em particular  após uma acidente de carro em 1973, ela descreve um ambiente rodeado por árvores e flores e cheio de gente, depois de ter-se reconhecido a si mesma deitada na mesa do hospital.

Outro é o caso de Brad Barrows, cego de nascença, que teve uma EQM em 1968 após uma parada cardíaca motivada por uma pneumonia séria. Ele tinha então oito anos de idade, mas, durante a EQM ao ascender pelo teto do hospital, ele pode divisar o estado do clima, que o céu nas vizinhanças estava cinza e que a neve cobria os telhados das casas, menos as ruas. Os eventos descritos também incluem a audição de músicas de caráter 'celestial' e a lembrança de ter estado em um ambiente totalmente diferente do hospital, como um campo imenso, iluminado por luzes feéricas.  O artigo de Ring e Cooper fornecem ainda outros casos (como o de Frank e  Nancy  nas páginas 120 e 122, respectivamente) que demonstram a corroboração das experiências visualizadas pelos cegos por meio de evidências externas - os tipos de evidência que são costumeiramente desprezadas pelas "teorias da alucinação", mas que estão igualmente presentes nos EQM dos cegos.

Segundo os testemunhos dessas pessoas cegas, a sensação de visão chega a ser assustadora inicialmente, por falta de referência de aprendizado de sua vida presente. A conclusão dos autores do estudo é muito bem sintetizada no último parágrafo da ref. 3:
As experiências de visão dos cegos são mais surpreendente do que eles próprios descrevem. Na verdade, eles, assim como as pessoas normais, têm experimentado episódios semelhantes  quando transcendem totalmente a consciência baseada no cérebro e, por causa disso, tais experiências desafiam qualquer tipo de nomenclatura convencional. Será necessário uma nova linguagem, tanto quanto novas teorias de um novo tipo de ciência, para se começar a compreendê-las. Com esse objetivo, o estudo de experiências paradoxais e totalmente anômalas é de papel fundamental para fornecer aos teóricos de hoje os dados necessários para se moldar a ciência do século 21. E essa ciência da consciência, assim como o próprio milênio, já despontam no horizonte. 
Interessantemente, os relatos de NDE de cegos são completos o suficiente para que possamos fazer uma ideia do verdadeiro tipo de sentido envolvido na experiência. Não se trata de uma experiência visual comum. Como os autores descrevem (5):
A estória de Sarah implica que ela era realmente capaz de ver durante uma EQM da mesma maneira que uma pessoa normal poderia ver. Mostramos isso como uma inferência sem garantias. O que se parece análogo a uma visão física, deixa de ser quando examinado com mais detalhes. É um tipo totalmente diferente de consciência esse (awareness), algo que chamamos de consciência transcendental, que funciona independentemente do cérebro, mas que necessariamente é filtrado por ele e por meio da própria linguagem. Assim, na época em que esses episódios apareceram, eles são descritos em termos da linguagem da visão, mas as experiências de verdade parecem ser totalmente diferentes do que se conhece e não são facilmente descritas em termos da linguagem do discurso ordinário. Na verdade, nosso trabalho mostrou a necessidade de se exercer discernimento crítico antes de tomar tais descrições como elas se apresentam. Com certeza, elas compõem boas histórias para livros e  títulos de tabloides, mas nem sempre são o que parecem. Elas, na verdade, são ainda mais extraordinárias do que isso. (ref. 3, 2o, parágrafo)
Em outras palavras, a descrição de EQMs de cegos de nascença traz elementos para compreendermos o sentido real de visão do Espírito, como descrito e anunciado em "O Livro dos Espíritos" por A. Kardec (ver questão #247 citada acima). 

Conclusões
Como temos estudado em vários posts aqui (6), o reducionismo fisicalista prevê que todas as funções cognitivas são funções da atividade cerebral. Esse paradigma tem relativo sucesso em muitas explicações de fenômenos de percepção comuns e é a base de todas as ciências clínicas. Fenômenos como atuação de drogas ou lesões sérias no cortex ou partes do cérebro parecem validá-lo. Não desconhecemos esse sucesso, embora inexista nenhuma prova de que sua validade seja inconteste. 

Como vimos, o sucesso aparente dessa tese (7) só vai até um determinado horizonte, além do qual reina o desconhecido que é 'varrido para baixo do tapete'. Portanto, o materialismo é uma visão aproximada da realidade, que deve ser complementada pela visão espiritualista.

As descrições de experiências visuais durante ocorrências de NDE ou OBE em cegos de nascença não tem diferença em relação à de pessoas normais. Tal constatação permanece como uma das evidências mais fortes sobre a independência da percepção visual integral no ser humano que ocorre durante tais essas anômalas e colocam um problema sério para as teorias que explicam a cognição a partir de experiência aprendida, num modelo funcional da mente.

A experiências de quase morte em cegos de nascença permanecem como "observações cruciais" que desafiam o paradigma existente e requerem estudos aprofundados, na verificação de ocorrências semelhantes com outras pessoas que tenham problemas severos de limitação dos sentidos (tais como a constatação de experiência auditiva em surdos de nascença durante essas experiências). A expansão de sentido ou recuperação de capacidades mentais tem sido relatada em pacientes com severas limitações mentais e que, de um instante a outro, se tornam lúcidos. Essa é a chamada 'lucidez terminal' e, as ocorrências com os cegos caem dentro dessa categoria.

Notas e referências

(1) Ou, "experimento crucial". Um "experimentum crucis" - ou experimento crucial - é um situação ou teste experimental capaz de decidir sobre a superioridade de uma teoria (ou hipótese) frente a outra ou conjunto de outras teorias. Ele reúne em si as qualidades empíricas capazes de afastar definitivamente condições ou aspectos que seriam cruciais para evitar a rejeição de teorias concorrentes e decidir definitivamente pela teoria vencedora. Francis Bacon também chamava essas oportunidades de 'Instantia crucis' (instâncias cruciais). Não é fácil projetar ou conceber experimentos cruciais, pois isso exige conhecimento aprofundado das peculiaridades de todas as teorias envolvidas, além de uma possibilidade experimental ou de observação. Não existiria, assim, um 'experimento crucial' capaz de definitivamente demonstrar uma deficiência séria no reducionismo e abrir as portas para outras noções não materialistas da mente? Um experimento desse tipo deveria ser capaz de mostrar que respostas cognitivas poderiam ser produzidas na ausência de funções cerebrais extensivas.

(2) Já vimos (Ver post 'O que acontece quando morremos' do Dr. Sam Parnia) que as chamadas 'Experiências de quase morte' são instâncias de lembranças por parte de pessoas que sofreram paralisia severa das atividades cerebrais. Durante essas ocorrências, são comuns a visão de luzes, seres "e outras dimensões" e, na sua imensa maioria, parentes e amigos falecidos. Essas ocorrências anômalas são explicadas de forma precária por diversos tipos de teorias que envolvem mais ou menos a assunção de que alguma função cerebral remanescente atua durante esses instantes, provocando a experiência que seria totalmente ilusória. Já vimos a fragilidade dessas explicações e outras anomalias que acontecem no contexto das experiências de quase morte (Ver post "Reflexões sobre o contexto de experiências de quase-morte: artigo de Michael Nahm (2011)"). Vimos também que a validação das experiências de forma independente (quando o que o sujeito viu é comprovado como realmente tendo ocorrido nos instantes da paralisia cerebral) também não é levada em consideração pela maioria dos especialistas quando confrontados com o problema.

(3) Ring K., Cooper S. (1997), Near Death and Out-of-Body Experience in the Blind: a Study of Apparent Vision, Journal of Near-Death Studies, 16(2), p. 101-147. Ver também:
(4) Original em inglês:
What the blind experience is more astonishing than the claim that they have seen. Instead, they, like sighted persons who have had similar episodes, have transcended brain-based consciousness altogether and, because of that, their experiences beggar all description or convenient labels. For these we need a new language altogether, as we need new theories from a new kind of science even to begin to comprehend them. Toward this end, the study of paradoxical and utterly anomalous experiences plays a vital role in furnishing the theorists of today the data they need to fashion the science of the 21st century. And that science of consciousness, like the new millennium itself, is surely already on the horizon.
(5) Original em inglês:
The story of Sarah implied that she really could see during her NDE, in the way that a sighted person might. We have shown this is an unwarranted inference. What seemed like an analog to physical sight really was not when examined closely. It is a different type of awareness altogether, which we have called transcendental awareness, that functions independently of the brain but that must necessarily be filtered through it and through the medium of language as well. Thus, by the time these episodes come to our attention, they tend to speak in the language of vision, but the actual experiences themselves seem to be something rather different altogether and are not easily captured in any language of ordinary discourse. Indeed, our work has shown the need to exercise critical discernment before taking these reports at face value. To be sure, they make good stories, in books or in tabloid headlines, as the case may be, but they are not always necessarily what they seem. They are more remarkable still.
(6) Ver post 'O que acontece quando morremos' do Dr. Sam Parnia.

(7) Ver post, "Como a parapsicologia poderia se tornar uma ciência", Parte I de P. Churchland.



    

2 de abril de 2013

III - Como a parapsicologia poderia se tornar uma ciência. (P. Churchland)


Numa série de posts, apresentamos uma tradução comentada do artigo "How Parapsychology could become a science" (Inquiry: An Interdisciplinary Journal of Philosophy, Volume 30, Issue 3, 1987) do filósofo Paul Churchland. Este artigo é uma crítica epistemológica bem embasada à parapsicologia, crítica que deveria ser seriamente considerada pelos praticantes dessa disciplina, se eles pretendem, de fato, fazê-la avançar. Alem disso, Churchland lança dúvidas bem fundamentadas sobre o paradigma materialista presente. Vale a pena estudar com atenção este trabalho. Todas as referências dele serão apresentadas no último post. O texto em azul é do artigo.


2. Parapsicologia: o lado teórico.

Podemos aplicar essa moral ao caso da parapsicologia? Acredito que sim. Mas, não é minha intenção aqui fazer uma apologia fajuta das pesquisas 'psíquicas' e cair fora. O que tenho em mente, ao invés disso, é o seguinte: a teoria cinética do calor é um claro exemplo de um sucesso científico que teve muita sorte; que características gerais da teoria e/ou que características de metodologia de seus proponentes foram responsáveis por tal sucesso? Se pudermos responder essa questão, então poderemos enfrentar a próxima questão lógica. Será que as teorias propostas e a metodologia usada pelos proponentes da parapsicologia têm qualquer relação mostrada pelo nosso caso de sucesso? (1) Vamos ver.

A primeira vantagem que os teóricos cinéticos tinham era uma alternativa sistemática e detalhada concernente aos fenômenos em questão. A nova teoria especificava que qualquer gás, por exemplo, era constituído de um grande número de partículas que colidiam de forma perfeitamente elástica entre si, partículas que tinham massa, volume e velocidade. Ela previa que a pressão exercida pelo gás em um vasilhame era nada mais que o efeito da colisão incessante dessas partículas em sua parede. Ela afirmava que o calor total de qualquer sistema era a soma da energia cinética das suas moléculas constituintes. Dizia ainda que a temperatura global de um sistema nada mais era que o nível de energia cinética de suas moléculas médias.  E, dado que a noção de massa, velocidade e energia cinética eram bem entendidas então, um grande número de eventos microscópicos poderia ser tratado com a linguagem e as leis da mecânica Newtoniana. Os proponentes da teoria cinética podiam tratar os desafios que os confrontavam com um número impressionante recursos teóricos.

Naturalmente, havia ainda muitas coisas que ainda demandavam explicações - a massa e a velocidade dos corpúsculos, a diferença entre calor específico mostrado por diferentes substâncias e o desaparecimento do calor latente durante os fenômenos de fusão e evaporação. Mas a própria teoria fornecia abordagens teóricas e experimentais bem definidas a esses problemas, abordagens que deram frutos em curto tempo. Na ausência de dessa teoria específica, poderosa e altamente detalhada, o progresso jamais teria sido alcançado (2).  

Será que a parapsicologia tem qualquer corpo de teoria que descreva o que a mente não material é, uma teoria sobre os elementos não físicos que a compõem e sobre quais leis não físicas governam a interação entre esses elementos e deles com o mundo material? Deixo claro que esta questão diz respeito à existência dessa teoria e não a sua verificação (3) Será que a parapsicologia tem qualquer corpo significativo de teoria com a qual é possível tratar os fenômenos empíricos? O fato embaraçoso é que ela não tem. (4) Um busca nas páginas do Journal of Parapsychology - um dos mais respeitáveis órgãos de comunicação parapsicológica (5) - vai mostrar muitos experimentos projetados para revelar alguma capacidade surpreendente de homens e animais. Mas o leitor não achará nada na direção de uma teoria bem definida, sistemática e positiva concernente à substância mental ou às propriedades mentais e as leis quantitativas e formais que governam sua interação e comportamento. 

Fig. 1 Churchland considera que a parapsicologia se assemelha a uma pescaria coletiva, onde a linha de pescar é jogada em uma direção qualquer seguindo um impulso local e se obtém uma quantidade grande de resultados inexplicáveis, pois a parapsicologia não tem um núcleo teórico que oriente a realização e o  progresso dessa pesquisa.
Se é que se encontra uma teoria, ela é vaga, impressionística e não quantitativa, usualmente voltada para explicar uma classe muito restrita de fenômenos, de forma que ela parece idiossincrática (6) ao autor. Não há um núcleo teórico estabelecido que tenha reunido a comunidade a partir de sucessos passados ou cuja forma presente tenha se moldado em resposta a falhas experimentais anteriores, um programa que faça a disciplina seguir adiante. Tais elementos, tão caros às ciências estabelecidas, estão sumariamente ausentes na causa em questão. Para um filósofo ou historiador de ciência, a parapasicologia parece uma disciplina surpreendentemente ateórica. Além da assunção vaga de que agentes conscientes têm um aspecto não físico de algum tipo, que se expressa as vezes na forma de percepção paranormal ou manipulação paranormal, simplesmente não se encontra um núcleo aceito de uma teoria geral.

O que se percebe na maior parte das vezes é uma busca experimental voltada para a isolação e demonstração de efeitos que transcendem uma explicação em termos das ciências físicas. Caracteristicamente, tais experimentos estão preocupados em identificar casos de sucesso na percepção de algum tipo ou de outro, onde a percepção é considerada como fisicamente impossível (por exemplo, visão remota, telepatia, clarividência) ou a manipulação ou controle são considerados como fisicamente impossíveis (psicocinesia, telepatia). Tais experimentos são usualmente bem elaborados, utilizando os mesmos recursos eletrônicos high-tech dos mais bem estabelecidos ramos da ciência e exploram as mesmas técnicas de avaliação estatísticas aprovadas em todo lugar. De fato, a motivação experimental é tão bem desenvolvida que ela pode ser aplicada a qualquer conjunto de variáveis arbitrárias que se suspeite terem alguma relação estatística significativa entre si. 

Como resultado, a pesquisa parapsicológica se parece com uma pescaria coletiva (7). Na falta de uma teoria geral que discrimine uma parte do lago da outra, o anzol experimental é lançado aqui e ali conforme o impulso momentâneo sugere fazer assim. O resultado coletivo é uma amontoado de resultados mal motivados que conduzem a disciplina a nenhuma direção particular, pois eles não motivam nenhuma modificação no núcleo da teoria que os guia (8), pois não há esse núcleo. 

Há outros problemas com a metodologia de se olhar para algum efeito, qualquer efeito, que não possa ser explicado em termos físicos. Pois, quando tais resultados são encontrados (ou melhor, alega-se que são encontrados), eles, de fato, podem ser misteriosos do ponto de vista físico, mas são igualmente misteriosos do ponto de vista não físico. A razão é que parapsicólogos não são capazes de fornecer uma explicação melhor do que qualquer físico, pois a parapsicologia não tem recursos teóricos significativos para construir tais explicações. Se alguém conseguir fazer com que o resultado de uma longa série de lançamentos de moedas tenha 100% de acurácia, não constitui explicação desse resultado simplesmente se afirmar que o sujeito "tem precognição" (9). Isso é o mesmo que dizer que o amobarbital faz você dormir porque tem as "virtudes do sono". Uma explicação real deveria citar os mecanismos não físicos envolvidos, identificar os fatos empíricos que os refletem, apelar para as leis que os governam e, então, deduzir exatamente o efeito surpreendente observado. A parapsicologia não faz nada disso.

J. B. Rhine (1895-1980) testando sujeitos com baralhos Zenner. Diante da ausência de uma motivação para se desenvolver uma teoria, a pesquisa parapsicológica se concentrou em produzir dados obstinadamente, na ideia errônea que isso bastava para caracterizar a parapsicologia como ciência.
Compare tudo isso com a teoria cinética do calor. A pesquisa experimental conduzida pelos teóricos cinéticos não tinha como objetivo encontrar um resultado experimental contrário à teoria clássica. Seu objetivo era testar algumas previsões específicas da teoria cinética. Quando um resultado experimental foi encontrado, eles tiveram sucesso não porque desafiavam qualquer explicação clássica, mas porque resultavam em explicações e predições ainda mais precisas, se colocadas em termo da teoria cinética corpuscular. A teoria cinética não brilhava por luz refletida de uma falha, ela tinha luz própria. 

Ao contrário, a parapsicologia brilha por luz refletida das falhas do materialismo, se é que ela brilha. A parapsicologia não tem sucesso explanatório por si própria, porque ela não tem uma teoria substancial que ela possa denominar como sendo sua própria. Se não há teoria detalhada, não pode haver explicações detalhadas. E, se não há explicações detalhadas, então a parapsicologia não pode brilhar por si. 

A ausência de uma teoria significativa é um problema muito sério. Mas, ainda mais sério, eu acho, é a falta de qualquer movimento, por parte da comunidade parapsicológica em toda sua história, em tentar reparar esse problema. A preocupação presente dos profissionais dessa área tem se concentrado em anedotas passadas ou presentes em torno de maravilhas psíquicas e/ou experimentos desenhados para demonstrar um efeito parafísico. Mas, nenhum efeito, não importa o quão impressionante ele seja, poderá ser identificado como 'parafísico', a menos que se encontre também uma explicação de sucesso em termos de uma teoria parafísica detalhada (10). Na ausência de tal explicação, o efeito não representará nada. Ele não passará de mais um efeito surpreendente e presentemente inexplicável. E, em nada adiantará descrevê-lo como 'parafísico'.

A saber, a perseguição obstinada de resultados experimentais parafísicos, dentro de um vácuo teórico genuíno, me parece algo metodologicamente estéril, ainda que os experimentos sejam feitos com o mais meticuloso cuidado e produzam algum resultado genuíno. O movimento Browniano era também um resultado profundamente embaraçoso e também foi encontrado por pesquisadores respeitáveis usando técnicas respeitáveis. Mas, ele não serviu em nada contra a termodinâmica clássica e nunca serviria, apenas quando a nova teoria cinética desse a sua existência uma forma inteligível. O que a parapsicologia precisa, antes de tudo, é, portanto, uma teoria específica e substancial que dê forma as suas vagas aspirações e sirva como guia sistemático a sua atividade experimental. Enquanto essa teoria não existir, ela nunca será uma ciência, não importa quantos experimentos ela acumule (11).

Há um vício metodológico com que todos estão familiares. Filósofos, em particular, estão acostumados com ele e são acusados de cultivá-lo. O vício consiste em tentar fazer progressos teóricos de grande envergadura na ausência de resultados experimentais sistemáticos para controlar o desenvolvimento teórico subsequente: os resultados são descritos como 'castelos no ar'. Aqueles que procedem desse jeito protestarão que eles são teóricos. E, com certeza, eles são. Eles dirão que suas teorias são coerentes e imaginativas. E, com certeza, elas podem ser. Mas, o resultado final tem muito pouco a ver com ciência.


O vício tem um equivalente oposto, menos observado na prática, que é tão obtuso em seu resultado final quanto o primeiro. Ele consiste em tentar fazer progressos experimentais de envergadura na ausência de uma teoria sistemática que guie a tradição experimental e que a modifique à luz dos resultados. Esses aparecem na forma de um monte de correlações entre parâmetros de significação questionável. Os que procedem dessa forma protestarão a dizer que são experimentalistas. E, do mesmo modo, respondemos que eles o são. Eles protestarão dizendo que seus testes são feitos de forma honesta e precisa. E, assim, eles podem ser. Mas, o resultado final terá pouco a ver com ciência. Como os aspirantes anteriores, tais pessoas apenas brincam de fazer ciência (12).

Avançando um pouco mais no exame da tradição parapsicológica representada nas páginas de seus jornais de divulgação, poderíamos imaginar que ela sofre do primeiro defeito. Mas, dessas duas doenças, não é a primeira, mas a segunda, eu afirmo, que descreve melhor a fraqueza da parapsicologia (13).






Comentários

(1) Grifo em itálico nosso.

(2) Essa afirmação é a base para se compreender a diferença entre ciência e não ciência. O que caracteriza a atividade científica, já dissemos várias vezes com base em estudos anteriores, é a existência de uma teoria embasada em resultados experimentais que oriente o progresso experimental. Sem essa teoria, simplesmente amontoar resultados não constitui ciência. Churchland aplica repetidamente esse princípio ao analisar a parapsicologia aqui.

(3) Grifo em itálico nosso. A primeira preocupação importante é saber se há uma teoria. Não importa que ela não seja ainda verificada experimentalmente.

(4) Grifo em itálico nosso. Note a afirmação forte e direta de Churchland contra a parapsicologia.

(5) A referência pode ser acessada aqui.

(6) Isto é, cada pesquisador tem a sua explicação própria de um fenômeno. Como não há uma teoria dominante, surge um 'labirinto de hipóteses' tão variado quanto a quantidade de tendências e gostos particulares de cada pesquisador.

(7) Grifo em itálico nosso. Ver comentário na Fig. 1.

(8) Grifo em itálico nosso.

(9) Grifo em itálico nosso. Essa observação de Churchland descreve bem o estado atual da pesquisa em parapsicologia: o da explicação em termos meramente textuais. Palavras como 'retrocognição', 'precognição', 'efeito PK', 'psi-gama', 'psi-kappa' são etiologias cuja definição está ligada diretamente às ocorrências e que são constantemente usadas como 'explicações' para um fenômeno, em um movimento claramente suspeito.

(10) Grifo em itálico nosso.  

(11) Grifo em itálico nosso. A justificativa final que consagra o princípio porque a parapsicologia não pode ser encarada como uma ciência. Embora se possa fazer pesquisa aparentemente científica pelo uso de equipamentos, técnicas e procedimentos tecnológicos considerados 'avançados', jamais se conseguirá  ciência de verdade na ausência de uma teoria.

(12) Grifo em itálico nosso.

(13) Esforços na direção de inserir a parapsicologia como uma atividade normal em campus universitários  foram feitos, encontrando, entretanto, dificuldades enormes. Ver: