30 de abril de 2013

IV - Como a parapsicologia poderia se tornar uma ciência. (P. Churchland)

Numa série de posts, apresentamos uma tradução comentada do artigo "How Parapsychology could become a science" (Inquiry: An Interdisciplinary Journal of Philosophy, Volume 30, Issue 3, 1987) do filósofo Paul Churchland. Este artigo é uma crítica epistemológica bem embasada à parapsicologia, crítica que deveria ser seriamente considerada pelos praticantes dessa disciplina, se eles pretendem, de fato, fazê-la avançar. Alem disso, Churchland lança dúvidas bem fundamentadas sobre o paradigma materialista presente. Vale a pena estudar com atenção este trabalho. Todas as referências dele serão apresentadas no último post. O texto em azul é do artigo.

3. Parapsicologia: o lado experimental.
Já tive a chance de expor minha principal crítica à tradição experimental da Parapsicologia. É uma crítica metodológica e ela em nada diz contra a honestidade ou o cuidado daqueles que conduzem os experimentos relevantes dela. A discussão até este ponto tem sido deliberadamente não crítica no que diz respeito à confiabilidade dos resultados experimentais em Parapsicologia.

Isso acontece porque a validade da crítica metodológica que fiz é bastante independente de quão confiáveis esses resultados são. Mas, seria errôneo da minha parte para com o leitor levá-lo a achar que quaisquer resultados dessa área devam ser aceitos. Certamente, nenhum deles é amplamente aceito fora da comunidade relativamente pequena da Parapsicologia. Não há análogo do movimento Browniano em que eles, tanto quanto nós, possamos confiar.

De fato, não está claro que eles tenham qualquer resultado positivo e replicável absolutamente (1). A história dessa área está cheia de escândalos mais ou menos sérios, que vão das sessões fabricadas da década de 20 e 30, a manufatura deliberada de dados falsos pelo renomado S. G. Soal na década de 40, passando pela "psicofotografia" expertamente maquinada por T. Serios na década de 60 até a os experimentos mal controlados de R. Targ e H. Puthoff ao redor de Uri Geller (um não declarado, mas bem treinado mágico) nos anos 70. Essas e outras óperas cômicas já foram bastante discutidas em outro lugar (Randi, 1982) e, portanto, não vou me ocupar com elas aqui (2). Mas, elas merecem ser citadas não porque foram escândalos. Esses casos são lições importantes porque foram tomadas em grande conta na época em que apareceram como formando as melhores evidências para os fenômenos paranormais já obtidos. E elas merecem também ser comentadas porque as fragilidades que acabam revelando são endêmicas na alma humana.

Por outro lado, não podemos rotular todo mundo de tolo, nem mesmo a maioria. Parapsicólogos frequentemente reportam resultados completamente negativos e que melhor testemunho de honestidade do que esse? O que queremos saber é o que devemos fazer com aqueles poucos estudos que foram aparentemente conduzidos com integridade e zelo escrupuloso e que mostram, estatisticamente, desvios significativos em relação àquilo que pensamos ser fisicamente explicável?


Não há resposta completamente geral que seja adequada a essa questão. Cada caso deve ser tratado em seu próprio mérito. Mas, uma coisa podemos exigir, antes de ficarmos empolgados com qualquer um deles, é que possam ser replicados (3), preferivelmente por um laboratório independente. As razões para isso não tem nada a ver com estupidez ou falsidade. Se, durante cinco anos de pesquisa parapsicológica, 1000 experimentos estatísticos forem realizados com honestidade e cuidado máximo, estamos certamente no caminho de se obter uma percentagem muito pequena de casos que se aproximam ou excedem o nível de "significância", com base apenas em fundamentos estatísticos. Isso significa que haverá uma pequena quantidade de resultados "positivos", mesmo que isso nada tenha a ver com o paranormal e ainda que os investigadores tomem o máximo de cuidado com os protocolos experimentais (4).


Esses resultados positivos, supomos, serão publicados. Mas veja só. Se 500 dos 1000 experimentos originais foram esquecidos porque os investigadores desapontados decidiram seguir carreira em outra direção; e se 400 dos 500 remanescentes foram esquecidos porque eles também deram resultado negativo e os investigadores procederam apenas à análise dos 100 restantes e se; desses, 80, embora submetidos da forma mais honesta possível, nunca são publicados porque os editores se tornaram impacientes com resultados parapsicológicos ainda mais negativos, então os resultados "acidentalmente significativos" de, digamos, 3 ou 4 experimento dos 1000 originais serão considerados contra uma amostra de apenas 20 experimentos publicados. Assim, esses últimos herdarão uma significância imerecida (5).

A única maneira de revelar esses acidentes estatísticos (e casos reais, insistimos, são inevitáveis) é justamente repetir aqueles que se mostraram significativos e ver se os resultados originais são reobtidos. Pelo que sei, nenhum resultado genuinamente anômalo sobreviveu a tal teste. Há, naturalmente, muitos resultados surpreendentes que foram e continuam a ser replicados, frequentemente na grande mídia ou em fóruns públicos. Mas, embora impressionantes, eles não são parapsicológicos (6). 

O caminhar sobre brasas é um exemplo. Ele tem sido realizado centenas de vezes em muitas culturas diferentes e é frequentemente associado a fatos paranormais. Existe um "instituto de autoajuda" aqui na minha comunidade que mantém sessões de caminhar sobre brasas na praia nas primeiras horas da manhã. Tais sessões são consideradas a culminação de seminários de autoajuda de cinco horas de duração e o objetivo deles é mostrar ao público pagante o que eles aprenderam sob a tutela de seus mentores, fazendo-os caminhar vivamente sobre uma cama cuidadosamente preparada com carvão em brasa. Alguns caminhantes adquirem bolhas nos pés com a experiência, mas a maioria deles não e eles, naturalmente, ficam impressionados com o espetáculo. A explicação que é passada para eles é que eles aprenderam a amplificar seus "campos biomagnéticos" que estão em volta de seus pés e que serve para protegê-los do calor.

Isso é uma bobagem sem tamanho, naturalmente, mas o carvão está, de fato, a uma temperatura bem alta.  Embora já estejam bastante consumidos, eles ainda podem ser vistos avermelhados, pelo menos na escuridão. O truque é que não há truque. Nesse estágio de combustão elevada, o carvão tem a densidade do isopor e uma capacidade térmica bem baixa. Embora a temperatura seja alta, o carvão simplesmente não contém energia térmica suficiente e não pode conduzi-la aos pés rápido o suficiente para causar queimaduras sérias nos quase 1,6 segundos de contato total dos pés com o carvão (quatro passos de 0,4 segundos cada). As pessoas pensam que podem ser queimadas por qualquer coisa, mesmo que minimamente incandescente, mas nem sempre isso é verdade. A camada de carvão deve se preparada com muito cuidado, entretanto, então eu não recomendo fazer isso por si mesmo, especialmente com lascas de carvão vegetal, o material mais à mão provável. Eles são mais quentes do que brasas de madeira e eles se partem liberando mais calor. Não tente sequer pisar neles.

O que recomendo é tentar o seguinte. No escuro, de forma que você possa melhor julgar o estado de aquecimento do carvão, pegue uma lasca quase em extinção com uma pinça de churrasco e toque-a levemente com a palma da mão ou planta do pé. Esse tipo de experiência permite grande nível de controle e é bastante seguro. Você ficará surpreso em ver o quão benigno é essa operação com o carvão, ao menos para tempos de contato menor que meio segundo. Caminhar sobre brasas é não só real como replicável, mas não é paranormal (ver Leikind and McCarthy,1985; P. M. Churchland 1986b).

Outro espetáculo comum é do tipo de leitura de mente clarividente que é encenado por mágicos da mídia, profissionais ou não. Aqui, não posso dar nenhum resumo de quão intricadas são essas performances: mágicos tem inúmeras maneiras de nos enganar. Mas, posso comentar algo sobre isso a fim de dar uma amostra de como  se parece.


Minha esposa e colega, Patricia Churchland, uma vez deslumbrou sua classe de filosofia lendo em voz alta e com olhos fechados frases escritas em uma pilha de envelopes bege que um estudante tinha passado para ela no começo da aula. Em cada ocasião de "leitura clarividente" de um envelope ainda fechado, ela perguntava se qualquer estudante teria submetido uma frase anunciada. Enquanto o estudante em questão manifestava incrível concordância, ela abria o envelope para checar casualmente a precisão de sua leitura e, então, passava para o próximo envelope e à adivinhação de seu conteúdo (7).

Ela conseguia acertar tudo. O truque é bem impressionante e exige apenas a colaboração de um estudante entre o grupo, alguém que falsamente concorde com o sucesso da "leitura" do primeiro envelope. De fato, ela apenas compensava sua primeira leitura com base na confirmação explícita do estudante em quem confiava. Enquanto abria o envelope para "checar a precisão" de sua primeira leitura, ela estava na verdade lendo o que outro estudante perfeitamente honesto tinha escrito no primeiro envelope. Essa frase era a base para a segunda "leitura". Enquanto mantendo o segundo envelope misteriosamente diante de si, ela anunciava o conteúdo do então primeiro envelope. O autor do conteúdo daquele envelope então confirmava com admiração o "sucesso" da leitura e o envelope era simultaneamente aberto para "checar" o acerto. Isso fornecia a base para a terceira leitura e assim por diante, até completar toda a pilha. O resultado era uma classe de estudantes em completo pandemônio. Poderes psíquicos evidentemente são mais fáceis de se obter do que se pode imaginar. 

Esses dois exemplos, leitura psíquica e caminhar sobre brasas não tem relação direta com a Parapsicologia acadêmica. Mas, eles ajudam-nos a ver como fenômenos paranormais ostensivos podem ser facilmente criados a partir do normal e do ordinário (8). E eles ajudam a nos armar contra os predadores dessa área, que são muitos. Devemos ter simpatia por aqueles que tentam fazer pesquisa paranormal responsável em relação às bobagens anunciadas pela mídia, práticas de culto e a atividade de exploradores inescrupulosos. É o mesmo que tentar um serviço legítimo de acompanhamento numa zona de meretrício declarado. Qualquer policial de passagem poderia se livrar de uma suspeita inicial, assim como de uma segunda e terceira suspeitas.

Comecei este trabalho perguntando se a Parapsicologia poderia se tornar uma ciência. Minha resposta é que ela precisa de uma teoria que a organize. E ela também precisa de uma tradição experimental que objetive a tarefa positiva de testar e refinar uma teoria geral alternativa da mente, ao invés de se dedicar a tarefa negativa de encontrar buracos inexplicáveis no materialismo. Parapsicólogos ainda não forneceram o material conceitual necessário para a construção desse programa de pesquisa coerente e bem motivado, mesmo admitindo que o materialismo é, de fato, falso. Essa é a razão porque a Parapsicologia ainda é uma pseudociência.

Notas

1 – Como Churchland segue no ‘vácuo teórico’ da Parapsicologia, a dúvida torna-se companheira inseparável dele, o que permite questionar a existência de fenômenos autênticos.

2- No caso de Ted Serios, não é verdade que o ‘admirável Randi’ tenha conseguido replicar as psicopictrografias dele.  O caso de Ted Serios está envolvido em um mistério e merece, por si, um estudo a parte. O que Churchland questiona principalmente é o caráter de ‘espetáculo’ que muitos eventos anômalos são revestidos, o que traz, naturalmente, suspeitas sobre sua validade e real existência na mente dos céticos, suspeitas que são amplificadas pelo caráter comercial em que se revestem os espetáculos. 

3 – A ‘replicação’ a que Churchland se refere aqui vem na esteira da suposta necessidade da Parapsicologia se comparar a uma ciência ordinária. No caso dessas ciências, a facilidade, simplicidade e o caráter ‘automático’ dos fenômenos confere facilmente a característica de reprodutibilidade. Isso não pode ser exigido dos fenômenos psíquicos, o que Churchland parece ignorar largamente.

4 – Veja que o caminho seguido pela Parapsicologia acadêmica, o de se dedicar ao estudo quantitativo de arranjos ‘paranormais’ leva inexoravelmente a essa crítica de Churchland. De fato, do ponto de vista puramente estatístico, em lançamentos sucessivos de uma moeda, há uma chance não nula de que várias faces ‘cara’ apareçam sucessivamente. Isso é um resultado meramente acidental e nada tem a ver com ‘paranormalidade’ a exigir necessariamente uma explicação do tipo 'psicocinése'. Esse ‘ruído’ estatístico deve ser obrigatoriamente suprimido ou isolado se o objetivo for expor, por meio desse método particular, a realidade de eventos paranormais. Trata-se, assim, de mais um escolho ao desenvolvimento da Parapsicologia, que fornece aos críticos muitos argumentos fortes.

5 – Notamos que essa observação crítica de Churchland também vale para qualquer outro fenômeno natural raro e não apenas aos de natureza parapsicológica. Ele representa uma crítica metodológica grave no caso da Parapsicologia, uma vez que o caminho de 'comprovação' escolhido envolve separar o efeito genuíno do ruído estatístico inerente em qualquer tipo de experimentação de múltiplas tentativas.

6 – Nessa classe estão, naturalmente, os fenômenos mediúnicos ostensivos que foram renegados pela corrente acadêmica e experimental da Parapsicologia por representarem eventos anômalos difíceis de serem replicados em laboratório.

7 – Essa simulação de leitura psíquica é, naturalmente, um truque que fornece combustível aos críticos da fenomenologia paranormal, mas que, obviamente, cai na classe das explicações muito fáceis. De fato, qualquer fenômeno natural pode ser imitado por truque e não apenas os fenômenos psíquicos. 

8 – Ver comentário 7.

As referências desse artigo podem ser encontradas em:

Churchland P. M. & Churchland P. S. (1999) On the Contrary, critical Essays, 1987-1997", A Bradford Book, 1st edition.

Referências

Leikind, B. J., and W. J. McCarthy (1985) An investigation of firewalking. The Skeptical Inquirer, 10, no. 1:23-35.

Feyerabend, P. K. (1963b). "How to be a good empiricist-A plea for tolerance in matters epistemological". In Philosophy of science: The Delaware seminar. Vol. 2, edited by B. Baumrin. New York: Interscience Publications, 3-19. Reprinted in Brody B., ed. 1970, Readings. in the philosophy of science. Englewood Cliffs, N.J.: Prentice Hall, 319--42. Also in Morick H., ed. 1972, Challenges to empiricism. Belmont, Calif.: Wadsworth, 164-93.

Leikind, B. J., and W. J. McCarthy (1985) An investigation of firewalking. The Skeptical Inquirer, 10, no. 1:23-35.

Randi, J. (1982) Flim-flam! Psychics, ESP, unicorns, and other delusions. Buffalo, N.Y.: Prometheus Books.








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17 de abril de 2013

Experimentum crucis: EQMs em pessoas cegas


"No Espírito, a faculdade de ver é uma propriedade inerente à sua natureza e que reside em todo o seu ser, como a luz reside em todas as partes de um corpo luminoso. É uma espécie de lucidez universal que se estende a tudo, que abrange simultaneamente o espaço, os tempos e as coisas, lucidez para a qual não há trevas, nem obstáculos materiais. Compreende-se que deva ser assim. No homem, a visão se dá pelo funcionamento de um órgão que a luz impressiona." (A. Kardec, comentário à questão #247 de "O Livro dos Espíritos". Foto: nossa homenagem a Dorina Nowill, 1919-2010)

É uma consequência natural da tese da sobrevivência que o ser humano deve possuir um outro corpo, de natureza diferente daquele conhecido. Nesse corpo residem verdadeiramente os sentidos, embora, na condição de "encarnado", os estímulos externos cheguem a ele por meio dos sensores de seu corpo material. Na ocorrência da morte, readquire o segundo corpo sua independência, ressurge o Espírito na posse de todos os seus sentidos originais.

Portanto, espera-se que, se determinadas condições especiais acontecerem, o Espírito encarnado, cujo sentido físico seja inexistente ou tenha sido severamente limitado durante sua vida normal, possa readquiri-lo em sua forma espiritual. Essa é uma previsão natural da tese da sobrevivência, uma previsão do paradigma espírita.

Por outro lado, para o reducionismo fisicalista ou materialismo, as experiências cognitivas estão totalmente atreladas aos estímulos externos recebidos. Portanto, não se espera que ocorram experiências cognitivas correspondentes àquelas ligadas à objetos inspecionados através de sentidos inexistentes (se eu, por exemplo, nunca vi um coelho, como posso sonhar ou imaginar ter visto um?). Surge aqui uma oportunidade para um "experimentum crucis" (1) porque, por lógica, cegos de nascença jamais poderiam descrever visões ou surdos de nascença jamais poderiam ouvir vozes. Mas, isso é justamente o que ocorre durante as chamadas EQMs (experiências de quase morte, 2). Nesses casos, torna-se um verdadeiro absurdo acreditar na tese da alucinação: como poderia alguém que nunca experimentou a visão, relatar experiências complexas relacionadas a ele? O absurdo é ainda maior ao se considerar que tais relatos ocorrem durante curtos períodos de tempo em que os pacientes são considerados "clinicamente mortos".

Alguns casos

Um trabalho de grande importância foi publicado em 1997 de autoria de Kenneth Ring e Sharon Cooper  (3) relatando, pela primeira vez de forma sistemática, diversos casos de experiências de quase-morte em cegos de nascença. A conclusão dos autores é que não existem diferenças de descrição na percepção com indivíduos, sejam eles cegos ou não, quanto ao conteúdo da experiência. No caso de cegos de nascença, há um momento na experiência em que eles começam a enxergar e tem visões complexas que se assemelham à das pessoas não cegas. O artigo de Ring e Cooper traz em detalhes dois casos, o de Vicki Umipeg e Brad Barrows. O caso de Vicki, cega de nascença vitimada por nascimento prematuro e excesso de oxigênio na incubaroda na década dee 1950, é interessante, por ter ela passado por duas EQM. Na última em particular  após uma acidente de carro em 1973, ela descreve um ambiente rodeado por árvores e flores e cheio de gente, depois de ter-se reconhecido a si mesma deitada na mesa do hospital.

Outro é o caso de Brad Barrows, cego de nascença, que teve uma EQM em 1968 após uma parada cardíaca motivada por uma pneumonia séria. Ele tinha então oito anos de idade, mas, durante a EQM ao ascender pelo teto do hospital, ele pode divisar o estado do clima, que o céu nas vizinhanças estava cinza e que a neve cobria os telhados das casas, menos as ruas. Os eventos descritos também incluem a audição de músicas de caráter 'celestial' e a lembrança de ter estado em um ambiente totalmente diferente do hospital, como um campo imenso, iluminado por luzes feéricas.  O artigo de Ring e Cooper fornecem ainda outros casos (como o de Frank e  Nancy  nas páginas 120 e 122, respectivamente) que demonstram a corroboração das experiências visualizadas pelos cegos por meio de evidências externas - os tipos de evidência que são costumeiramente desprezadas pelas "teorias da alucinação", mas que estão igualmente presentes nos EQM dos cegos.

Segundo os testemunhos dessas pessoas cegas, a sensação de visão chega a ser assustadora inicialmente, por falta de referência de aprendizado de sua vida presente. A conclusão dos autores do estudo é muito bem sintetizada no último parágrafo da ref. 3:
As experiências de visão dos cegos são mais surpreendente do que eles próprios descrevem. Na verdade, eles, assim como as pessoas normais, têm experimentado episódios semelhantes  quando transcendem totalmente a consciência baseada no cérebro e, por causa disso, tais experiências desafiam qualquer tipo de nomenclatura convencional. Será necessário uma nova linguagem, tanto quanto novas teorias de um novo tipo de ciência, para se começar a compreendê-las. Com esse objetivo, o estudo de experiências paradoxais e totalmente anômalas é de papel fundamental para fornecer aos teóricos de hoje os dados necessários para se moldar a ciência do século 21. E essa ciência da consciência, assim como o próprio milênio, já despontam no horizonte. 
Interessantemente, os relatos de NDE de cegos são completos o suficiente para que possamos fazer uma ideia do verdadeiro tipo de sentido envolvido na experiência. Não se trata de uma experiência visual comum. Como os autores descrevem (5):
A estória de Sarah implica que ela era realmente capaz de ver durante uma EQM da mesma maneira que uma pessoa normal poderia ver. Mostramos isso como uma inferência sem garantias. O que se parece análogo a uma visão física, deixa de ser quando examinado com mais detalhes. É um tipo totalmente diferente de consciência esse (awareness), algo que chamamos de consciência transcendental, que funciona independentemente do cérebro, mas que necessariamente é filtrado por ele e por meio da própria linguagem. Assim, na época em que esses episódios apareceram, eles são descritos em termos da linguagem da visão, mas as experiências de verdade parecem ser totalmente diferentes do que se conhece e não são facilmente descritas em termos da linguagem do discurso ordinário. Na verdade, nosso trabalho mostrou a necessidade de se exercer discernimento crítico antes de tomar tais descrições como elas se apresentam. Com certeza, elas compõem boas histórias para livros e  títulos de tabloides, mas nem sempre são o que parecem. Elas, na verdade, são ainda mais extraordinárias do que isso. (ref. 3, 2o, parágrafo)
Em outras palavras, a descrição de EQMs de cegos de nascença traz elementos para compreendermos o sentido real de visão do Espírito, como descrito e anunciado em "O Livro dos Espíritos" por A. Kardec (ver questão #247 citada acima). 

Conclusões
Como temos estudado em vários posts aqui (6), o reducionismo fisicalista prevê que todas as funções cognitivas são funções da atividade cerebral. Esse paradigma tem relativo sucesso em muitas explicações de fenômenos de percepção comuns e é a base de todas as ciências clínicas. Fenômenos como atuação de drogas ou lesões sérias no cortex ou partes do cérebro parecem validá-lo. Não desconhecemos esse sucesso, embora inexista nenhuma prova de que sua validade seja inconteste. 

Como vimos, o sucesso aparente dessa tese (7) só vai até um determinado horizonte, além do qual reina o desconhecido que é 'varrido para baixo do tapete'. Portanto, o materialismo é uma visão aproximada da realidade, que deve ser complementada pela visão espiritualista.

As descrições de experiências visuais durante ocorrências de NDE ou OBE em cegos de nascença não tem diferença em relação à de pessoas normais. Tal constatação permanece como uma das evidências mais fortes sobre a independência da percepção visual integral no ser humano que ocorre durante tais essas anômalas e colocam um problema sério para as teorias que explicam a cognição a partir de experiência aprendida, num modelo funcional da mente.

A experiências de quase morte em cegos de nascença permanecem como "observações cruciais" que desafiam o paradigma existente e requerem estudos aprofundados, na verificação de ocorrências semelhantes com outras pessoas que tenham problemas severos de limitação dos sentidos (tais como a constatação de experiência auditiva em surdos de nascença durante essas experiências). A expansão de sentido ou recuperação de capacidades mentais tem sido relatada em pacientes com severas limitações mentais e que, de um instante a outro, se tornam lúcidos. Essa é a chamada 'lucidez terminal' e, as ocorrências com os cegos caem dentro dessa categoria.

Notas e referências

(1) Ou, "experimento crucial". Um "experimentum crucis" - ou experimento crucial - é um situação ou teste experimental capaz de decidir sobre a superioridade de uma teoria (ou hipótese) frente a outra ou conjunto de outras teorias. Ele reúne em si as qualidades empíricas capazes de afastar definitivamente condições ou aspectos que seriam cruciais para evitar a rejeição de teorias concorrentes e decidir definitivamente pela teoria vencedora. Francis Bacon também chamava essas oportunidades de 'Instantia crucis' (instâncias cruciais). Não é fácil projetar ou conceber experimentos cruciais, pois isso exige conhecimento aprofundado das peculiaridades de todas as teorias envolvidas, além de uma possibilidade experimental ou de observação. Não existiria, assim, um 'experimento crucial' capaz de definitivamente demonstrar uma deficiência séria no reducionismo e abrir as portas para outras noções não materialistas da mente? Um experimento desse tipo deveria ser capaz de mostrar que respostas cognitivas poderiam ser produzidas na ausência de funções cerebrais extensivas.

(2) Já vimos (Ver post 'O que acontece quando morremos' do Dr. Sam Parnia) que as chamadas 'Experiências de quase morte' são instâncias de lembranças por parte de pessoas que sofreram paralisia severa das atividades cerebrais. Durante essas ocorrências, são comuns a visão de luzes, seres "e outras dimensões" e, na sua imensa maioria, parentes e amigos falecidos. Essas ocorrências anômalas são explicadas de forma precária por diversos tipos de teorias que envolvem mais ou menos a assunção de que alguma função cerebral remanescente atua durante esses instantes, provocando a experiência que seria totalmente ilusória. Já vimos a fragilidade dessas explicações e outras anomalias que acontecem no contexto das experiências de quase morte (Ver post "Reflexões sobre o contexto de experiências de quase-morte: artigo de Michael Nahm (2011)"). Vimos também que a validação das experiências de forma independente (quando o que o sujeito viu é comprovado como realmente tendo ocorrido nos instantes da paralisia cerebral) também não é levada em consideração pela maioria dos especialistas quando confrontados com o problema.

(3) Ring K., Cooper S. (1997), Near Death and Out-of-Body Experience in the Blind: a Study of Apparent Vision, Journal of Near-Death Studies, 16(2), p. 101-147. Ver também:
(4) Original em inglês:
What the blind experience is more astonishing than the claim that they have seen. Instead, they, like sighted persons who have had similar episodes, have transcended brain-based consciousness altogether and, because of that, their experiences beggar all description or convenient labels. For these we need a new language altogether, as we need new theories from a new kind of science even to begin to comprehend them. Toward this end, the study of paradoxical and utterly anomalous experiences plays a vital role in furnishing the theorists of today the data they need to fashion the science of the 21st century. And that science of consciousness, like the new millennium itself, is surely already on the horizon.
(5) Original em inglês:
The story of Sarah implied that she really could see during her NDE, in the way that a sighted person might. We have shown this is an unwarranted inference. What seemed like an analog to physical sight really was not when examined closely. It is a different type of awareness altogether, which we have called transcendental awareness, that functions independently of the brain but that must necessarily be filtered through it and through the medium of language as well. Thus, by the time these episodes come to our attention, they tend to speak in the language of vision, but the actual experiences themselves seem to be something rather different altogether and are not easily captured in any language of ordinary discourse. Indeed, our work has shown the need to exercise critical discernment before taking these reports at face value. To be sure, they make good stories, in books or in tabloid headlines, as the case may be, but they are not always necessarily what they seem. They are more remarkable still.
(6) Ver post 'O que acontece quando morremos' do Dr. Sam Parnia.

(7) Ver post, "Como a parapsicologia poderia se tornar uma ciência", Parte I de P. Churchland.